Decisão é da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte.
Em decisão proferida nessa segunda-feira (13), o juiz da 33ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, Márcio Toledo Gonçalves, reconheceu o vínculo de emprego entre a empresa Uber do Brasil Tecnologia Ltda. E o motorista R. L. S. F., credenciado pela empresa para fazer transporte de passageiros, com a utilização do aplicativo Uber.
Na sentença, o magistrado concluiu que a empresa se apresenta no mundo do marketing como uma plataforma de tecnologia, mas, considerados os fatos objetivos de sua relação com os motoristas e clientes, caracteriza-se, na verdade, como uma empresa de transportes. E, analisando um a um os requisitos legais da relação de emprego, o julgador considerou presentes todos eles.
Além da obrigação de assinar a Carteira de Trabalho do motorista, o Uber foi condenado a pagar ele horas extras, adicional noturno, multa prevista na CLT, verbas rescisórias pelo rompimento do contrato sem justa causa e restituição dos valores gastos com combustível e também com a água e balas oferecidas aos passageiros.
Entenda o caso
Na ação, o motorista requereu a declaração de vínculo de emprego por todo o período em que transportou passageiros na cidade de Belo Horizonte com a utilização do aplicativo Uber, além de verbas trabalhistas, rescisórias e restituição das despesas com combustível e amenidades oferecidas aos clientes.
Ele disse que recebia salário-produção, isto é, comissões que variavam entre R$ 4.000 a R$7.000 por mês. Em defesa, o Uber contestou a existência dos requisitos para a formação do vínculo. Afirma que é empresa que explora plataforma tecnológica que permite aos usuários do aplicativo solicitar, junto a motoristas independentes, transporte individual privado.
Nesse caso, pela tese do Uber, foi o motorista quem a contratou para uma prestação de serviço de captação e angariação de clientes. Sendo assim, o motorista não recebeu nenhuma remuneração, mas, ao contrário, foi ele quem remunerou o Uber pela utilização do aplicativo. Alegou ainda a inexistência de habitualidade e não eventualidade na prestação de serviços, já que não havia pré-fixação de dias e horários obrigatórios para que o motorista ficasse à disposição nas ruas.
Ao analisar o mérito da questão, o juiz chama a atenção para a chamada “uberização” das relações de trabalho. De acordo com o magistrado, esse fenômeno preconiza um novo modelo de organização do trabalho a partir dos avanços da tecnologia, que interferem e desnaturam a tradicional relação capital-trabalho.
Para ele, a “uberização”, embora ainda se encontre em nichos específicos do mercado, tem potencial de se generalizar para todos os setores da atividade econômica: “Não podemos ignorar a importância dos avanços tecnólogicos na evolução das relações laborais”, pondera. Entretanto, acrescenta, “não se pode perder de vista o papel histórico do Direito do Trabalho como um conjunto de normas construtoras de uma mediação no âmbito do capitalismo e que tem como objetivo constituir uma regulação do mercado de trabalho de forma a preservar um ‘patamar civilizatório mínimo’ por meio da aplicação de princípios, direitos fundamentais e estruturas normativas que visam manter a dignidade do trabalhador”. O contrário, segundo o juiz, resultaria em “retrocesso civilizatório”.
Para decidir o caso, o magistrado aplicou o princípio da primazia da realidade sobre a forma, ou seja, não importa o nome que as partes emprestam à relação, nem mesmo documentos e contratos assinados nesse sentido, mas o que ela representa, de fato, aos olhos do Direito. E, nessa análise dos fatos, ele concluiu que a relação entre o motorista e o Uber tinha, na prática, todas as características de uma relação de emprego. E passou a analisar, um por um, os elementos que caracterizam o vínculo empregatício: pessoalidade, habitualidade, remuneração e subordinação.
Quanto à prestação de serviços com pessoalidade, ele considerou caracterizada, já que, conforme confirmado por uma testemunha, o Uber exige prévio cadastro pessoal de cada um dos seus a motoristas e o envio de diversos documentos pessoais, como certificado de habilitação para exercer a função de condutor remunerado, atestados de bons antecedentes e certidões “nada consta”. Observando que a empresa escolhia minunciosamente quem poderia integrar ou não os seus quadros, o juiz considerou irrelevante o fato de o motorista poder indicar outros condutores, também cadastrados, para dirigir o seu veículo: “Trata-se apenas de uma expressão do poder diretivo daquele que organiza, controla e regulamenta a prestação dos serviços”, ponderou, concluindo que o Uber mantém vínculo personalíssimo com cada motorista que utiliza sua plataforma, independentemente de este ser ou não o proprietário do veículo conduzido.
No quesito remuneração, o juiz Márcio Toledo rejeitou a afirmação da ré de que era o motorista quem a remunerava pela utilização da plataforma digital: “Primeiro porque a prova dos autos evidencia que a ré conduzia, de forma exclusiva, toda a política de pagamento do serviço prestado, seja em relação ao preço cobrado por quilometragem rodada e tempo de viagem, seja quanto às formas de pagamento ou às promoções e descontos para usuários. Não era dada ao motorista a menor possibilidade de gerência do negócio, situação que não ocorreria caso fosse o obreiro o responsável por remunerar a ré. Segundo porque a reclamada não somente remunerava os motoristas pelo transporte realizado, como também oferecia prêmios quando alcançadas condições previamente estipuladas.”
Uma testemunha relatou que, ocasionalmente, o Uber pagava os motoristas para ficarem à disposição para chamadas em algum ponto da cidade, onde desejavam fazer expansão de mercado. Outro depoente relatou que a empresa garantia valores mínimos de receita por hora, para determinados horários. Por seu turno, o site da plataforma demonstra que ela remunera seus motoristas ainda que a viagem seja gratuita ao usuário. Para completar, os demonstrativos de pagamento juntados ao processo revelam que os pagamentos realizados pelos usuários são feitos para a ré, que retira o seu percentual e retém o restante, repassando-o aos motoristas somente ao final de cada semana. “Isso demonstra que a reclamada não apenas faz a intermediação dos negócios entre passageiros e condutores, mas, ao contrário, recebe por cada serviço realizado e, posteriormente, paga o trabalhador”, registrou o magistrado.
E mais: o depoimento do ex-gerente geral da ré aponta como era feito o cálculo das tarifas a serem cobradas, o que, para o juiz, demonstra que a Uber estipulava, por via transversa, os salários dos motoristas. Informou a testemunha “que o salário mínimo era calculado por hora, com base em 44 horas semanais; que a remuneração do motorista era calculada entre 1.2 e 1.4 salários mínimos, descontando todos os custos.”
O terceiro requisito, o da não-eventualidade, também foi considerado cumprido, já que os motoristas cadastrados no aplicativo atendem à demanda intermitente pelos serviços de transporte, trabalhando praticamente todos os dias, muito embora nos horários à sua escolha. O juiz identificou uma “exigência velada” de que os motoristas estejam em atividade de forma sistêmica.
Em depoimento ao Ministério Público do Trabalho da 1ª Região, o Sr. Saadi Alves de Aquino, ex-coordenador de operações da ré, declarou que se o motorista ficar mais de um mês sem pegar qualquer viagem, o mesmo seria considerado inativo. Outra testemunha declarou que eram enviados e-mails ameçando o motorista de exclusão da plataforma, caso não voltassem a realizar corridas. Nesse ponto, o magistrado acrescentou que a não eventualidade não é afastada pelo fato de o motorista ter flexibilidade na fixação do seu horário de trabalho.
Submissão às diretrizes da empresa – Por fim, o juiz confirma a existência no caso do elemento mais importante para a caracterização do vínculo de emprego: a subordinação. A chamada “subordinação estrutural” à empresa, no seu modo de ver, é clara, uma vez que o motorista, estava inserido na dinâmica da organização e prestando serviço indispensável aos fins da atividade empresarial: o transporte de passageiros.
Mas, nesse caso, o magistrado entendeu que até mesmo a subordinação clássica às ordens diretas do empregador está presente: “O autor estava submisso a ordens sobre o modo de desenvolver a prestação dos serviços e a controles contínuos. Além disso, estava sujeito à aplicação de sanções disciplinares caso incidisse em comportamentos que a ré julgasse inadequados ou praticasse infrações das regras por ela estipuladas”, pontuou.
Quanto ao modo de produção e realização dos serviços, testemunhas revelaram que o Uber realiza verdadeiro treinamento de pessoal sobre como tratar o cliente, como abrir a porta, orientam para sempre ter água e bala dentro do carro, manter o carro sempre limpo e com ar condicionado sempre ligado e até a exigência de uso de terno e gravata para motoristas do Uber Black, o que o juiz considerou como o exercício do poder diretivo do empregador.
Ao observar que o controle do cumprimento dessas regras e dos padrões de atendimento durante a prestação de serviços ocorre por meio das avaliações e reclamações feitas pelos consumidores do serviço, o juiz alertou: “Somente o avanço tecnológico da sociedade em rede foi capaz de criar essa inédita técnica de vigilância da força de trabalho”. Trata-se, segundo ele, de um controle difuso, realizado pela multidão de usuários, e que se traduz em algoritmos que definem se o motorista deve ou não ser punido, deve ou não ser “descartado”.
Diante de tudo isso, o juiz considerou insustentável a alegação de que o Uber se constitui apenas como empresa que fornece plataforma de mediação entre motorista e seus clientes. “Caso fosse mesmo apenas uma empresa de tecnologia a tendência era a cobrança de uma quantia fixa pela utilização do aplicativo, deixando a cargo dos motoristas o ônus e bônus da captação de clientes”, fundamenta, concluindo que, ainda que a ré atue também no desenvolvimento de tecnologias como meio de operacionalização de seu negócio, essa qualificação não afasta o fato de ser ela, sobretudo, uma empresa de transporte. Como reforço a essa conclusão, ele aponta o fato de que já há julgados responsabilizando a empresa por vícios na prestação de serviços decorrentes de erros do motorista na condução do veículo (ex. Proc. 0801635-32.2016.8.10.0013 do 8º Juizado Especial Cível e das Relações de Consumo de São Luís/MA).
O magistrado explicou que, no caso, a força de trabalho do motorista pertencia à organização produtiva Uber, que exigia de 20 a 5% sobre o faturamento bruto alcançado, enquanto, para o motorista, sobravam as despesas com combustível, manutenção, depreciação do veículo, multas, avarias, lavagem, água e impostos. “Tal circunstância evidencia que o autor não alienava apenas o resultado, mas o próprio trabalho, ratificando, assim, a dependência própria do regime de emprego”, concluiu, enfatizando que, para obter maior ganho financeiro, a ré tentou se esquivar da legislação trabalhista “elaborando um método fragmentado de exploração de mão-de-obra, acreditando que assim os profissionais contratados não seriam seus empregados”. Nesse sentido, o próprio gerente-geral da Uber informou que “a equipe da Uber recebia treinamento sobre como se comunicar com público interno e externo, mais especificamente para diminuir riscos de reconhecimento de vínculo empregatício com os motoristas”.
Portanto, considerando presentes todas as circunstâncias fático-probatórias que caracterizam o contrato de trabalho, o magistrado julgou procedente o pedido para reconhecer o vínculo empregatício entre as partes, determinando a anotação do contrato na CTPS do motorista, no prazo de 05 dias a partir da intimação, sob pena de multa diária de R$1.000,00. A remuneração deve ser fixada em 80% sobre o faturamento das viagens, com admissão em 20/02/2015 e saída em 17/01/2016. Foi também reconhecida a dispensa sem justa causa, sendo devidas verbas rescisórias, como aviso prévio indenizado; 11/12 de férias proporcionais com 1/3; 13ª salário proporcional de 2015 e 2016; FGTS com 40% de todo o contrato e multa do art. 477, § 8º da CLT.
O julgador considerou clara a possibilidade de controle sobre a jornada do motorista, já que a ré tem à sua disposição instrumentos tecnologicos que permitem o monitoramento remoto do empregado: “O que se evidencia dos autos é que o ‘smartphone’ do obreiro não era apenas ferramenta de trabalho, mas também relógio de ponto altamente desenvolvido, verdadeiro livro de registro das atividades realizadas”, declarou, concluindo que o motorista tem direito a jornada de trabalho legal. Como a ré não levou ao processo os registros de jornada e nem fez prova em contrário, o juiz aplicou o entendimento da Súmula 338, do TST, presumindo verdadeira a jornada descrita pelo motorista na petição inicial. Mas, como o reclamante era comissionista puro, a condenação foi apenas de pagamento do adicional sobre duas horas extras por dia de trabalho, com devidos reflexos.
A empresa foi condenada ainda a pagar o adicional noturno, no percentual de 20%, com relação ao trabalho executado entre as 22h e as 05h, e a remunerar, em dobro, os feriados trabalhados. E ainda, como o Direito do Trabalho veda a transferência do ônus da atividade econômica ao empregado, o juiz condenou a Uber a ressarcir as despesas do empregado com gasolina (fixadas em R$2.000,00 por mês) e mais R$100,00 mensais, a título de gastos com água e bala oferecidas aos usuários durante as corridas.
Por fim, o juiz determinou a expedição de ofício à SRT, ao Ministério Público do Trabalho, ao INSS e à Receita Federal, uma vez constatada a prática de fraude à legislação trabalhista e previdenciária. E ainda: diante da constatação de que a empresa atua no ramo de transporte individual de passageiros, determinou também expedição de ofício à Secretaria de Finanças do Município de Belo Horizonte e a Secretaria de Estado de Fazenda do Estado de Minas Gerais, para que esses órgãos tomem as providências que entenderem cabíveis quanto a possíveis sonegações fiscais.
O valor da condenação foi fixado, por estimativa, em R$30.000,00, mas o valor final a ser recebido pelo motorista deverá ser apurado em cálculo de liquidação da sentença. Da decisão ainda cabe recurso ao TRT-MG. (Texto: Margarida Lages).
Fonte: O Tempo