A historinha de hoje é um pouquinho ácida, porque trata de uma moça que matou seus pais. Então, se você tiver problemas com acidez, sugiro tomar um remédio para azia antes de ler esta historinha.
Feito este esclarecimento inicial, vamos falar sobre a Kelem. Você já conhece ela. A Kelem foi casada com o Jailson e, devido a um impasse sobre como apertar o tubo de pasta de dentes, eles acabaram se divorciando.
A Kelem, depois de se divorciar do Jaílson, passou a ser uma pessoa muito agressiva. Ela passou a andar sempre com pedras nas mãos, literalmente. Qualquer um que a contrariasse, ela dava uma bela pedrada.
Em uma determinada ocasião, em um daqueles almoços de domingo, a Kelem levou um lindo pavê (aquela sobremesa gostosa) pra ser compartilhado em família, na casa de seus pais. Na hora da sobremesa, seu pai não se aguentou e então fez a maldita pergunta: “É pavê ou pa cumê?”. Kelem ficou enfurecida com isso. Ela pegou as pedras que estavam na sua bolsa e saiu atirando, descontroladamente. Afinal, disse Kelem, posteriormente, em seu depoimento: “Ninguém mandou fazer piada sem graça”. Pois bem, Kelem atingiu, com as pedradas, a cabeça de seu pai e a cabeça de sua mãe e eles, infelizmente, vieram a falecer horas depois no hospital. Triste história. Mas o irmão de Kelem conseguiu escapar sem qualquer ferimento: ele saiu correndo, se escondeu na adega da casa do vizinho e inclusive aproveitou pra tomar uns vinhos enquanto a poeira não baixava. A família da Kelem era mesmo muito “crazy”.
Diante desta situação, todos estavam imaginando que o irmão de Kelem iria ajuizar uma ação judicial, em que: alegaria que Kelem, sua irmã, praticou um homicídio doloso contra seus pais; pediria a exclusão de Kelem da herança (ou seja, pediria que Kelem não tivesse qualquer direito de receber a herança de seus pais).
Isso seria possível? Sim. Nos termos do art. 1.814, I, do Código Civil de 2002, são excluídos da sucessão (e não terão direito à herança) os herdeiros ou legatários que houverem sido autores, co-autores ou partícipes de homicídio doloso, ou tentativa deste, contra a pessoa de cuja sucessão se tratar (o morto), seu cônjuge, companheiro, ascendente ou descendente. Logo, o irmão de Kelem poderia ter agido para impedir que ela recebesse a herança.
Todavia, ao ser questionado a respeito do assunto, em uma coletiva de imprensa, o irmão de Kelem foi conclusivo: “Eu tenho dois motivos pra não pedir a exclusão da minha irmã da herança dos meus pais. Primeiro, a piada do meu pai foi realmente horrível e ninguém mais aguenta essa piadinha do pavê (fica a dica). Segundo, se eu ingressar com esta ação, provavelmente eu irei levar uma pedrada também”.
Nesta situação, a bagunça estava desenhada. Nada podia ser feito para excluir Kelem da herança. Programas televisivos (aqueles que passam de manhã, de segunda a sexta) faziam enquetes populares e todos clamavam por justiça, com letras maiúsculas e letrinhas coloridas. Todos queriam que Kelem, por ter cometido homicídio contra seus pais, não tivesse o direito de receber a herança.
Mas, qual a razão pela qual nada podia ser feito? A razão era a seguinte. O Código Civil de 2002 nada dispunha sobre quem poderia pedir, em uma ação judicial, a exclusão de Kelem da sucessão. A doutrina especializada, por sua vez, dizia que, em regra, somente interessados na sucessão (como o irmão de Kelem) é que poderiam realizar o pedido. Como exceção, a doutrina entendia que o Ministério Público poderia ajuizar a ação, mas desde que presente o interesse público (enunciado 116, da Jornada de Direito Civil), como no caso de haver um interessado incapaz (o que não era o caso do irmão de Kelem, porque ele não era incapaz). Então, neste contexto, em que somente o irmão de Kelem é que poderia ter pedido a exclusão dela da herança e em que o irmão de Kelem nada fez nesse sentido, não havia alternativa jurídica para fazer com que a moça não recebesse a herança.
Em razão de situações como esta, os Congressistas do nosso país resolveram dar um pause no joguinho “Super Mário Rush”, de seus smartphones, e resolveram trabalhar um pouco pra acrescentar o art. 1815, § 2, no Código Civil de 2002.
Agora, segundo o novo dispositivo, em casos como o da Kelem, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário. A legitimidade não é mais somente dos interessados. Assim, se a nova disposição legislativa existisse na época em que a Kelem decidiu sair por aí dando pedradas em seus pais, o Ministério Público poderia ter ajuizado uma ação contra Kelem, com um pedido para excluí-la da herança de seus pais. Assim, a Kelem não teria tido o direito de receber um centavo.
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Escrito por: Fernando Nonnenmacher
Fonte: Jusbrasil