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Recentemente o Superior Tribunal de Justiça (STJ) se manifestou acerca da questão do acesso, em investigação criminal, a comunicações por aplicativos como whatsapp e outros meios informáticos, bem como por intermédio de viva – voz. Com a prudência e o acato às normas constitucionais que deve marcar a jurisprudência, firmou entendimento de que há necessidade de ordem judicial para que o sigilo dessas comunicações possa ser violado (STJ, HC 51.531 – RO; RHC 75.800 e REsp. 1630097). [1]

Surpreendentemente, em posição oposta a essa orientação jurisprudencial do STJ e outros tribunais estaduais que seguem pela mesma senda, o I Fórum Nacional de Juízes Criminais elaborou o Súmula n. 07 com o seguinte teor:

“O acesso ao conteúdo de todos os dados, dentre eles, aplicativos e contatos telefônicos, em celular apreendido durante flagrante pela polícia não precisa de autorização judicial” (grifo nosso).

Procura-se defender essa tese, considerando as dificuldades de comunicação e morosidade para obtenção de autorizações judiciais nestes casos. Ocorre que esse é um problema prático, um problema ligado à estrutura das instituições, suas relações e logística, sua comunicação e interação. O argumento jurídico não é autorizado a solucionar esse tipo de questão. Para problemas jurídicos, devem ser moldadas soluções jurídicas; para problemas práticos, soluções práticas, jamais obtidas por meio de desvirtuamento da legislação ordinária e muito menos por violação das garantias constitucionais da intimidade, vida privada e reserva de jurisdição. É plenamente possível apresentar propostas de agilização e integração entre Judiciário, Ministério Público e Polícia Judiciária, ao invés de simplesmente manter o “status quo” deficitário desses órgãos e optar pela suposta “solução” consistente na desconsideração da letra da lei e dos ditames constitucionais. Já estamos fartos de abundante legislação penal e processual penal meramente simbólica. Ninguém precisa de um judiciário que venha a aderir ao simbolismo e apresentar-se, não como sujeito imparcial, mas como uma espécie de “justiceiro” e reparador das mazelas das instituições, mediante distorções interpretativas. Isso não colabora para a melhora do sistema, antes o mantém emperrado à custa de violar direitos e garantias individuais.

Binder destaca a dificuldade em estabelecer critérios seguros para o reconhecimento de nulidades, devido ao fato de que as decisões judiciais variam motivadas por “considerações valorativas do momento” apartadas “de qualquer marco de referência teórico”. [2]

A forma no processo pode, eventualmente, e especialmente numa realidade precária como a brasileira, onde são sucateados órgãos como o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Judiciária, parecer um entrave. No entanto, há que lembrar com Ihering que “inimiga da arbitrariedade, a forma é irmã gêmea da liberdade”. [3] Na verdade, as formalidades legais exigidas são instrumentos de proteção de princípios voltados para a consecução concreta de garantias e direitos individuais, que devem permanecer incólumes diante de abusos do poder penal. [4]

Infelizmente, o posicionamento dos Juízes Criminais que se espelha na Súmula 07 de seu I Fórum Nacional, revela a (in) consciente “inversão de lugares” por que passa o judiciário. Antes visto como um poder de manutenção de expectativas institucionais, agora se apresenta o Poder Judiciário como uma espécie de fonte esperançosa para mudanças. A Justiça passa de algo instituído para força instituidora. [5]

Acontece que o Juiz não é um “justiceiro”, um “policial”, um “acusador”, um “revolucionário” ou “reformador político”, ele é, ao reverso, aquele a quem cabe manter as promessas institucionais, especialmente aquelas fundadas nas normas constitucionais. Uma alteração nesse quadro, longe de produzir maior liberdade e justiça, tende ao arbítrio, uma espécie de ditadura ou totalitarismo judiciário. Nesse cenário, lei e constituição vão perdendo sua consistência, tornando-se cada vez mais evanescentes e indefinidas. A já frágil ideia de segurança jurídica se dissolve totalmente.

Eis o campo fértil para o populismo judicial. Nas palavras de Garapon:

“A tentação populista se caracteriza, antes de mais nada, por sua pretensão a um acesso direto à verdade. Alguns indivíduos aproveitam a mídia para se emancipar de qualquer tutela hierárquica. Ela lhes oferece um acesso direto, conforme expressão de Perelman, ao ‘auditório universal’, quer dizer, à opinião pública. Um juiz considera-se prejudicado por sua hierarquia? Ele apela imediatamente para a arbitragem da opinião pública. Todas as anulações processuais são purgadas por essa instância de recurso selvagem que a mídia representa, e os argumentos técnicos do direito ou processuais não tardam a revelar-se para a opinião pública como argúcias, astúcias, desvios inúteis, que impedem a verdade de ‘vir à tona’. A busca direta da aprovação popular por intermédio da mídia, acima de qualquer instituição, é uma arma temível à disposição dos juízes, o que torna muito mais presente o desvio populista. O populismo, com efeito, é uma política que pretende, por instinto e experiência, encarnar o sentimento profundo e real do povo. Esse contato direto do juiz com a opinião é proveniente, além disso, do aumento de descrédito do político. O juiz mantém o mito de uma verdade que se basta, que não precisa mais da mediação processual”. [6]

Daí surge uma espécie de “ativismo” que simplesmente passa como um trator sobre a legalidade e a constitucionalidade, fundando-se na “inquisição e denúncia selvagem, emoção, horror, desconfiança em relação às instituições tradicionais e uma espécie de presunção de culpabilidade”. [7]

Assassinando sem piedade o respeito pelos direitos e garantias individuais e as formalidades legais, pretende-se conformar uma atuação mais justa, célere e eficiente. Porém, o único resultado de tudo isso é um caos institucional, porque, como já dito antes, os lugares e temas estão trocados. Movendo-se na área jurídica se pretende obter soluções práticas e na seara prática, soluções jurídicas!

Em encerramento, ficam as questões: por que ao invés de os Juízes Criminais proporem a desconsideração da reserva de jurisdição para o acesso às comunicações telefônicas em aplicativos, não apresentam sugestões tais como: investimento em pessoal e material para o Judiciário, Ministério Público e Polícia Judiciária; instituição de programas de intercâmbio imediato, via telemática, entre Juízes, Promotores e Delegados de Polícia para casos de urgência (pedidos de mandados de busca, de quebra de sigilo telefônico, de interceptação etc.); integração de redes de inteligência dos Estados e Federal na área das polícias em geral e do Judiciário e Ministério Público; instituição urgente de um documento de identificação único com banco de dados nacional; instituição de um banco de dados nacional para consulta sobre mandados de prisão e passagens criminais (mas, algo realmente eficiente, não o sistema precário hoje vigente). Por que não essas e outras propostas práticas para a solução de um problema prático? Por que escolher a via fácil e deletéria de desconsideração das regras e princípios? Por que a opção pela “gambiarra” ao invés dos ajustes adequados?

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REFERÊNCIAS

BINDER, Alberto M. Descumprimento das Formas Processuais. Trad. Angela Nogueira Pessôa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Viva – Voz e prova ilícita: Decisão do STJ. Boletim IBCCrim. n. 297, ago., p. 11 – 12, 2017.
GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
IHERING, Rudolf von. El espiritudelderecho romano. Madri: Revista de Occidente, 1962.

[1] A questão foi tema de trabalho deste autor publicado pelo IBCCrim: CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Viva – Voz e prova ilícita: Decisão do STJ. Boletim IBCCrim. n. 297, ago. 2017, p. 11 – 12.
[2] BINDER, Alberto M. Descumprimento das Formas Processuais. Trad. Angela Nogueira Pessôa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 3.
[3] IHERING, Rudolf von. El espiritudelderecho romano. Madri: Revista de Occidente, 1962, p. 284.
[4] BINDER, Alberto. Descumprimento das Formas Processuais. Trad. Angela Nogueira Pessôa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 36.
[5] GARAPON, Antoine. O Juiz e a Democracia. Trad. Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 49.
[6] Op. Cit., p. 66.
[7] Op. Cit., p. 99.

Escrito por: Eduardo Luiz Santos Cabette
Fonte: Jusbrasil