Cada vez mais vemos por aí situações em que aqueles intitulados “cidadãos de bem” capturam pessoas suspeitas de praticar crimes e passam a agredi-las.
A justificativa é que a sociedade está cansada da insegurança e da injustiça e, por isso, aqueles que a integram passam a agir com as próprias mãos, agredindo os que conseguem pegar “no flagra”.
Todavia, não há como responsabilizar alguém sem o devido processo legal.
Renato Brasileiro, em seu Manual de Processo Penal, p. 37, afirma que:
Quando o Estado, por intermédio do Poder Legislativo, elabora as leis penais, cominando sanções àqueles que vierem a praticar a conduta delituosa, surge para ele o direito de punir os infratores num plano abstrato e, para o particular, o dever de se abster de praticar a infração penal. A partir do momento em que alguém pratica a conduta delituosa prevista no tipo penal, este direito de punir desce do plano abstrato e se transforma no ius puniendi in concreto. O Estado, que até então tinha um poder abstrato, genérico e impessoal, passa a ter urna pretensão concreta de punir o suposto autor do fato delituoso. Surge, então, a pretensão punitiva, a ser compreendida como o poder do Estado de exigir de quem comete um delito a submissão à sanção penal. Através da pretensão punitiva, o Estado procura tomar efetivo o ius puniendi, exigindo do autor do delito, que está obrigado a sujeitar-se à sanção penal, o cumprimento dessa obrigação, que consiste em sofrer as consequências do crime e se concretiza no dever de abster-se ele de qualquer resistência contra os órgãos estatais a que cumpre executar a pena. Todavia, esta pretensão punitiva não pode ser voluntariamente resolvida sem um processo, não podendo nem o Estado impor a sanção penal, nem o infrator sujeitar-se à pena. Em outras palavras, essa pretensão já nasce insatisfeita. Afinal, o Direito Penal não é um direito de coação direta. Apesar de o Estado ser o titular do direito de punir, não se admite a imposição imediata da sanção sem que haja um processo regular, assegurando-se, assim, a aplicação da lei penal ao caso concreto, consoante as formalidades prescritas em lei, e sempre por meio dos órgãos jurisdicionais (nulla poena sine judicio). Aliás, até mesmo nas hipóteses de infrações de menor potencial ofensivo, em que se admite a transação penal, com a imediata aplicação de penas restritivas de direitos ou multas, não se trata de imposição direta de pena. Utiliza-se, na verdade, de forma distinta da tradicional para a resolução da causa, sendo admitida a solução consensual em infrações de menor gravidade, mediante supervisão jurisdicional, privilegiando-se, assim, a vontade das partes e, principalmente, do autor do fato que pretende evitar os dissabores do processo e o risco da condenação. É exatamente daí que sobressai a importância do processo penal, pois este funciona como o instrumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso.
Dessa feita, ao aplicar um castigo a alguém que é suspeito de praticar um crime, sem que haja observância ao processo penal, aquele que aplica o castigo comete crime e, consequentemente, se torna um “bandido”.
Isto é, aquele que agride (ilegalmente) alguém, por causa de uma agressão ilegal praticada por ele (roubo, furto, …), é tão criminoso quanto quem é castigado.
Logo, se se torna um “bandido”, pode ser agredido por terceiros em decorrência dessa “condição”?
O raciocínio, ao que parece, é que você pode praticar um crime (agredir alguém) para ensinar a essa pessoa que não pode praticar um crime (roubo, furto, …).
Não sei você, mas eu não consigo compreender muito a lógica. Se o problema é o crime, como aceitar a sua prática (mesmo que tenha “justificativa”)?
Se formos falar de justificativa, te garanto que cada um tem a sua e aí é que está o problema.
Combateremos a injustiça cometendo outra injustiça?
Sem falar que não há como, sem o devido processo legal, afirmar que determinada pessoa praticou o crime, pois somente após uma ação penal é que se chega a essa conclusão. Portanto, a agressão ilegal que já era reprovável se torna ainda pior (se é que é possível) se o agredido é inocente.
Por isso é fundamental que todos aqueles que sejam suspeitos de praticar um crime passem pelas formalidades legais de apuração da prática delitiva, de modo a evitar ou minimizar a responsabilização criminal de um inocente.
Com relação as agressões em si, já reparou que os “justiceiros” só agridem adolescentes/jovens infratores, desarmados, que praticam pequenos crimes patrimoniais, geralmente sozinhos? Nessa hora todo mundo sai correndo atrás.
Aí são várias pessoas contra apenas uma, sem nenhuma forma de defesa, muitas vezes imobilizada.
Isso demonstra que exercemos a “vingança” sempre contra o mais fraco, contra aquele que, provavelmente, menos fez. O “bandido” mesmo não sofre nada (se o objetivo é realmente de punir bandido de verdade).
Só a título de exemplo, separei alguns dos crimes que são praticados pelos “cidadãos de bem” ao castigar suspeitos de praticar crimes:
- Art. 121. Matar alguém
- Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem
- Art. 146. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda
- Art. 147 – Ameaçar alguém, por palavra, escrito ou gesto, ou qualquer outro meio simbólico, de causar-lhe mal injusto e grave
- Art. 148 – Privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado
- Art. 345 – Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite
- Art. 350 – Ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder:
É preciso ter em mente que se “autorizarmos” a realização de justiça pelas próprias mãos, qualquer um pode ser vítima desse ato, basta ser confundido com alguém ou estar no lugar errado e na hora errada.
Não se iluda, agredir alguém ilegalmente é crime tão grave ou ainda mais grave do que aquele praticado pelo agredido.
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Escrito por: Pedro Magalhães Ganem
Fonte: Canal Ciências Criminais