Ainda que a nossa Constituição Federal tenha sido frequentemente atacada e vilipendiada, inclusive, e, principalmente por aqueles que deveriam zelar pela sua fiel aplicação e resguardo, é importante resgatar a sua força normativa, tarefa que cumpre a todos e a todas que militam diariamente junto ao nosso sistema de (in) justiça.
Todos nós sabemos que as decisões judiciais devem ser fundamentadas, quanto mais diante o disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal. O Código de Processo Penal, em termos probatórios, trabalha com o chamado princípio do livre convencimento motivado, o que significa que dentre as provas previstas em lei e aquelas consideradas lícitas, já que a Constituição Federal veda a utilização de provas ilícitas, o Julgador ou a Julgadora deverá por imposição constitucional e legal motivar sua decisão, esboçando nesse ato as razões de fato e de direito que o levaram àquele entendimento e decisão.
Pois bem, mas onde quero chegar e o que tudo isso tem haver com o título da coluna de hoje?
Chamou minha atenção, ao ler o Sumário Executivo da Pesquisa Audiência de Custódia, Prisão Provisória e Medidas Cautelares: obstáculos institucionais e ideológicos à efetivação da liberdade como regra, publicada pelo CNJ na semana passada, com Coordenação do Prof. Dr. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, que procurou investigar os elementos estruturais e ideológicos que fomentam o uso abusivo da prisão provisória no Brasil, mais especificamente em seis estados da Federação, entre eles o Rio Grande do Sul, bem como a percepção dos operadores jurídicos envolvidos com a implementação das chamadas audiências de custódia, a análise empreendida em acórdãos judiciais, no período de 01.01.2016 a 31.12.2016, sendo 94 deles oriundos do TJRS.
Nesse ponto, especificamente chamou-me atenção que no caso da aplicação da nova redação do artigo 318 do CPP, especialmente no que se refere às prisões de mulheres, no TJRS, no TJSC e no TJSP, em que houve a observação de julgados sobre o assunto, predomina o entendimento de que as novas disposições normativas não configuram direitos subjetivos das mulheres presas preventivamente e, sim, benefícios que podem ser concedidos facultativamente a partir da discricionariedade do julgador, em situações excepcionais, onde reste demonstrado o risco por parte da gestante e do feto, bem como a necessidade da presença da pessoa presa à vida da criança.
Assim, como já havia escrito lá atrás, nesse mesmo espaço, ao tempo da edição do estatuto da primeira infância que alterou o CPP nessas disposições legais, coluna que suplicava pela aplicação do disposto no artigo 318 do CPP, acessei o site do TJRS, em sua jurisprudência, e me coloquei a realizar uma pesquisa breve, tendo escolhido um julgado, que não tem qualquer intuito de amostra ou de pesquisa mais aprofundada, pois este espaço não permite, mas que escolhi para questionar os argumentos utilizados para o indeferimento da prisão domiciliar a uma mulher então acusada da prática de tráfico de drogas.
Trata-se de habeas corpus, julgado pela Primeira Câmara Criminal, de nº 70075958579, em data de 06 de dezembro de 2017, que teve por maioria a ordem denegada; vencido o Relator, que a concedia atendendo ao disposto no art. 318 do CPP.
A paciente estava sendo acusada do delito de tráfico de drogas, mas vou me atentar apenas aos argumentos que dizem com o indeferimento da prisão domiciliar, os quais foram adotados pela maioria ao denegar a ordem de habeas corpus, até pelo espaço que temos a tanto.
Uma primeira consideração, portanto, diz com a utilização por parte do Tribunal da chamada analogia in malam partem, a qual é vedada em direito penal, aliás, aprendemos isso em Direito Penal I na faculdade.
É certo que o artigo 318 do CPP afirma que poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente se encontrar em qualquer das hipóteses logo então enumeradas em seus respectivos incisos, entretanto, não há como pretende o acórdão, senão por meio da analogia in malam partem, equiparar a necessidade da imprescindibilidade aos cuidados da pessoa menor de 06 anos de idade ou com deficiência (inciso III), a hipótese da mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos (inciso V), como pretende fazer crer.
Não há qualquer exigência por parte da lei de demonstração da necessidade ou da imprescindibilidade da mulher para permanência com filho de até 12 anos de idade incompletos, requisito, portanto, exigido pelo Judiciário em discrepância legal e em evidente analogia prejudicial às acusadas.
Se a lei assim quisesse, o teria feito como o fez em relação ao inciso III, o que não ocorreu. Exatamente por que o artigo de lei é claro: no caso da prisão domiciliar nós temos é a substituição da prisão preventiva, que, então, para ser decretada deverá se fazer presente os seus requisitos e pressupostos, ou seja, não temos uma medida cautelar diversa da prisão, por que nesse caso o que caberia seria a liberdade provisória, que não enseja prisão preventiva, a qual poderá vir acompanhada de uma medida cautelar diversa da prisão, acaso presente o disposto no art. 282 do CPP.
O que a lei prevê, portanto, é uma faculdade ao julgador de substituir a prisão preventiva por domiciliar quando a mulher comprove idoneamente, através de certidão de nascimento, aliás, é o que prevê o art. 155, parágrafo único do CPP, que possui filho com até 12 anos de idade incompletos.
E essa disposição, sim, deveria se estender a todas as mulheres que se encontram com prisão preventiva decretada e que poderiam ter essa prisão revisada para fins de substituição por prisão domiciliar.
Há uma obrigatoriedade, sim, de colocação dessas mulheres em prisão domiciliar, por uma questão de gênero que sequer me permitirei aprofundar.
Há uma obrigatoriedade por que essas mulheres são na sua grande maioria a cabeça da estrutura familiar; por que exercem mais de uma jornada de trabalho diariamente; por que a obrigatoriedade de colocação de todas essas mulheres em prisão domiciliar, conforme dá conta à decisão judicial, é medida que escancara a seletividade do sistema de (in) justiça e a sua matriz inquisitorial, antropocêntrica e desigual.
Qual prova pretendia que viesse aos autos os Julgadores a comprovar a imprescindibilidade de uma mãe ao filho com até 12 anos de idade incompletos?
Essa prova deveria constar da sua argumentação, aliás, ao refutar a aplicação de um dispositivo legal, o mínimo que se esperaria juridicamente, conforme mandamento constitucional e legal (vide os parágrafos que iniciam a coluna) é que motivasse o indeferimento.
Mas o fato é que a decisão, que não faz referência nesse ponto, a qualquer artigo de lei, apenas para fins de analogia in malam partem, segue valendo-se de argumentos não jurídicos: o primeiro é a quantidade da droga encontrada no chão, ao lado da acusada, duas pedras de crack e nove buchas de maconha, bem como num fogão abandonado em uma casa (sessenta pedras de crack), não se sabe de quem, na qual, segundo a palavra dos policiais, se encontrava a acusada sentada na frente quando da abordagem.
Na sequência, a decisão aponta para o fato de que o problema da droga encerra questão complexa, abrangendo desenvolvimento social, saúde e segurança públicas.
Traz alguns dados sem qualquer referência bibliográfica ou científica de que o número de internações junto ao SUS de dependentes de drogas cresceu em 128%, mas não faz qualquer análise de que esses dados também possam representar exatamente o fracasso da política repressiva de drogas atual e a indústria de internações que vão de encontro a uma política reducionista de danos nessa área e que encobrem, na verdade, uma burla a toda legislação antimanicominial.
Segue criminalizando o uso de drogas, o que não é crime, ao asseverar que o uso dessas substâncias possui significativo potencial para condutas violentas, havendo relação direta entre o uso de entorpecentes e o índice de criminalidade, valendo-se, portanto, de argumentos fabricados pela mídia, sem validação científica, e que compõem o imaginário do senso comum.
Talvez, uma simples análise de quem se encontra preso no Brasil já pudesse ao menos trazer uma pista contrária ao então referido, pois sua grande parte diz com crimes sem violência ou grave ameaça à pessoa, o próprio tráfico de drogas, assim como o furto, receptação e outros crimes contra o patrimônio. Dados do infopen, divulgados pelo Ministério da Justiça, em dezembro de 2017 dão conta disso.
Por fim, o argumento da segurança pública que é atingida pelo elevado número de mortes associadas ao tráfico de drogas, que tem relação com outros crimes e que financia a compra de armas para a guerra entre as organizações criminosas pelo controle do território e do tráfico.
A esse argumento, questiono: é a prisão, produz o quê? Quem engorda e alimenta a economia do crime senão a prisão? Nunca se prendeu tanto no Brasil, somos a terceira maior população carcerária do mundo, em condições desumanas, precárias, indignas, e quais são as nossas taxas de criminalidade? Obtivemos redução?
A decisão, então, finda com o argumento da repercussão social, do clamor, um clamor que sequer sabemos de onde e de quem vem, mas que interfere sobremaneira a construção das decisões judiciais, tal como no caso em comento.
A minha ideia é repartir com vocês a minha indignação, a constatação da utilização de argumentos não jurídicos para o indeferimento de um direito, a utilização de juízos morais, a influência do senso comum e midiático e o desvelamento de uma cultura inquisitorial, como diria Kant de Lima, que confirma “a naturalização da desigualdade própria da nossa consciência cultural.”
Escrito por: Mariana Py Muniz Cappellari
Fonte: Canal Ciências Criminais