Ronaldo Fleury, do MPT, afirma que nova regra irá incentivar nepotismo em todas as esferas do Estado brasileiro.
Ronaldo Fleury em reunião da Comissão Especial da Reforma Trabalhista, em fevereiro deste ano (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)
A Lei que regulamenta a terceirização ampla no país, aprovada nesta quarta-feira (22) na Câmara dos Deputados, seria o fim do concurso público e um incentivo ao nepotismo nos municípios, no Estado e na União. Essa é a avaliação do procurador-geral do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ronaldo Fleury, que enumera consequências negativas para os trabalhadores, para o serviço público e até para o capital.
“Não vai ter mais concurso público porque todos esses serviços poderão ser terceirizados”, avalia Fleury.
O procurador projeta o futuro a partir de dados sobre os atuais terceirizados.”Os índices de acidentes de trabalho são muito altos: de cada dez trabalhadores que sofrem acidentes de trabalho fatais, oito são terceirizados. Por quê? Porque eles têm menos treinamento, existe um compromisso menor com o meio ambiente do trabalho”, exemplifica.
O procurador-geral, porém, indica que há chances de a lei ser anulada por contrariar o segundo parágrafo do artigo 37 da Constituição Federal, segundo o qual “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos”. No entanto, ele pondera que o Senado poderá pressionar a votação do PL 4330, cujo relator é o senador de oposição Paulo Paim (PT-RS).
Confira a íntegra da entrevista:
Brasil de Fato – Como o PL de ontem vai afetar a renovação dos servidores públicos?
Ronaldo Fleury – Tirando as carreiras de Estado, como os membros do Ministério Público, magistradura e a diplomacia, simplesmente acaba com o serviço público. Não vai ter mais concurso público, porque todos esses serviços poderão ser terceirizados.
Em todas as esferas?
Sim, em União, estados e municípios. E vai permitir a volta do nepotismo, do apadrinhamento político, a corrupção por meio de contratos de terceirização. É o que fatalmente ocorrerá. Porque o político, o procurador ou quem quer que seja que queira contratar um filho precisaria apenas criar uma empresa terceirizada, o órgão que ele trabalha será o contratante. Então é o fim de todo trabalho de combate ao nepotismo.
Algumas categorias como professor, polícia civil e hospital público estão sofrendo com a falta de mão de obra. Tem concursos que foram feitos e as pessoas não foram chamadas. De que forma essa lei vai afetar os estados e municípios na hora de lidar com essa falta de funcionários?
Essa lei vai fazer com que todos os concursados ou aqueles que pretendam fazer concurso tentem outra coisa. Talvez um apadrinhamento político para entrar por meio da terceirizada, porque essa lei libera que prefeitos, governadores, administradores simplesmente façam os contratos de terceirização e prestações de serviços, e toda a contratação seja feita por essas empresas. Essa lei permite que haja uma escola sem professores contratados, que haja uma montadora de automóveis sem um único montador de automóveis… Na verdade, vai contra o princípio do capitalismo. O capitalismo supõe capital e trabalho – vai ter só o capital, não vai ter o trabalho, porque vai ter o serviço do outro lado. Ou seja, teremos empresas que alugam gente, que têm lucro alugando gente.
Hoje, temos algumas figuras jurídicas semiterceirizantes, como as Organizações Sociais (OSs). O que diferencia o sistema das OSs de um sistema público terceirizado?
Na verdade, essa terceirização via OS é uma espécie de uma parceria público-privada, mas que não é tão privada porque são Organizações Sociais, que têm uma destinação específica, uma especialização, uma fiscalização de recursos. Podem receber recursos públicos…
Já na terceirização liberada, como se pretende com esse PL, o que vai ter é simplesmente empresas tendo lucro alugando gente.
E tem uma coisa: esse projeto não é claro no sentido da terceirização ampla. Ele é claro no sentido da possibilidade de contratos temporários, que é outra coisa.
E qual seria a diferença?
No contrato temporário, a empresa contrata diretamente os trabalhadores temporários. É o que ocorre muito no comércio hoje durante o período do Natal. Mas, agora se permite contratação indistinta e por até nove meses, ou seja, é praticamente o ano inteiro! Assim, eu posso contratar um funcionário e, a cada nove meses, fazer um novo contrato. Ele não vai ter direito a férias ou licença maternidade…
A terceirização elimina o direito à licença maternidade?
Sim, porque no contrato temporário a pessoa tem um prazo previsto anteriormente para seu fim.
E ainda tem outro problema: se a gente cotejar esse projeto com o da reforma da Previdência, o que vai acontecer: a gente vai ter uma rotatividade muito grande tanto nos temporários quanto nos terceirizados – nos terceirizados, já é muito grande a rotatividade, quatro vezes maior que os contratados pela CLT; aqueles 49 anos que serão necessários trabalhar pela reforma da Previdência, vão ser muito mais. Porque são 49 anos de contribuição.
Vamos supor que eu tenha contratos de nove meses. Trabalho nove meses e fico três sem contrato. Nove meses e fico três sem contrato… Eu vou ter que trabalhar por pelo menos uns 70 anos para poder aposentar. Eu vou ter que contribuir muito mais tempo para dar os 49 anos de contribuição.
Quais são os direitos que são suprimidos com esse projeto?
Os trabalhadores terceirizados ganham entre 60% e 80% do salário dos trabalhadores diretos. A empresa para manter um trabalhador tem que pagar um salário melhor. O terceirizado não. O empregador [que trabalha com terceirizados] trabalha com quantidade, sem a necessidade de uma especialização, de um treinamento.
Quanto ao índice de acidentes de trabalho, de cada dez trabalhadores que sofrem acidentes fatais, oito são terceirizados. Ou seja, 80% dos acidentes de trabalho fatais são de terceirizados. Por quê? Porque eles têm menos treinamento, existe um compromisso menor com o meio ambiente do trabalho. A empresa que presta o serviço vai jogar a culpa na empresa onde o serviço é prestado [contratante] e a empresa onde o serviço é prestado vai jogar a culpa na prestadora de serviço. Fica esse jogo de empurra e é o trabalhador que sofre as consequências.
Além disso, tem a rotatividade da mão de obra que, no caso dos terceirizados é menor que um ano. Tem também o problema sindical. O sindicato perde muita força. Os trabalhadores deixam de ser vinculados àquelas categorias em que eles efetivamente trabalham para serem vinculados a sindicatos de prestadores de serviço, que têm um índice de associação e, consequentemente, uma força de negociação muito baixa.
As consequências são absurdas para o direito do trabalho e para os trabalhadores.
E para o capital, essa medida não vai levar à perda de produtividade?
Com certeza! Os trabalhadores terceirizados são menos especializados, têm um treinamento menor. Só isso já gera uma queda de produtividade. Tem toda a discussão jurídica se aquela terceirização em determinada empresa vai ser uma terceirização de serviço ou uma simples contratação por uma empresa interposta. Qual a diferença?
Se eu tenho um hotel e quero contratar um gerente, eu pego uma empresa terceirizada e falo: ‘você tem que contratar o João, que vai prestar serviço para mim’. Isso na verdade é contratação de empregado usando uma empresa que se interpõe entre empregado e empregador. É uma fraude.
É diferente de eu chegar e falar: eu quero contratar um serviço de limpeza para o meu hotel. Quem vai prestar o serviço é a empresa e não interessa quem vai executar o trabalho.
Vai ser ruim para o capital, e para os trabalhadores, nem se diga! O projeto assassina a CLT. Para os empregadores, cria uma insegurança jurídica muito maior. As empresas que quiserem se aproveitar desse projeto para simplesmente trocar a mão de obra, que hoje é com vínculo empregatício, por mão de obra terceirizada ou contrato temporário, se arriscam a criar uma espada de Dâmocles* sobre a cabeça dessas empresas, porque elas podem ser demandadas judicialmente e depois não ter como pagar a indenização, que pode ser milionária.
Com essa lei, essas empresas não deixariam de ter que pagar indenização?
Não. Elas têm que pagar, mas de forma subsidiária. Ou seja, primeiro os empregados têm que ir na empresa prestadora. Se a empresa não tiver condição de pagar, os trabalhadores podem ir atrás da empresa contratante desses serviços. Se ainda tiver vivo, porque o trabalhador já vai ter sido demitido e não vai ter recebido nada – já vai estar passando fome.
Existe alguma forma de reverter essa reforma trabalhista?
Nós estamos avaliando a constitucionalidade do projeto que foi aprovado. Vai depender do texto que for sancionado e, se for o caso, nós vamos acionar a Procuradoria Geral da República para que entre com Ação Direta de Inconstitucionalidade [ADI].
Um dos pontos mais óbvios é que a lei aprovada contraria o segundo parágrafo do artigo 37 da Constituição Federal [o texto diz que “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”].
Mas parece que vão sair dois projetos diferentes para a mesma matéria; a informação é que o Senado vai votar ainda o outro projeto sobre terceirização [o PL 4330].
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Por Camila Rodrigues da Silva
Edição: Vanessa Martina Silva
Fonte: Brasil de Fato