Enquanto o mundo discute a despenalização do aborto, os critérios médicos, os prazos de gestação e etc., o Brasil sinaliza um debate de extremo retrocesso.
A discussão que tomou conta do cenário legislativo na última semana trata da criminalização do aborto, até mesmo no caso de estupro, hipótese legalmente prevista na nossa legislação atual, como caso de isenção de pena.
Pois bem, quais elementos podem justificar a proibição de que uma mulher, vítima de um estupro, possa ter o direito de optar em ter este filho ou em não ter que gerar uma vida que lhe carregue eternamente a memória de uma violência sofrida?
Nenhum argumento minimamente lógico consegue dar conta de explicar esta propositura de mudança legislativa, que não sejam invocações morais e religiosas.
A relação entre religião e direito ao longo da história nos trouxe muito mais problemas do que soluções justas e adequadas aos preceitos jurídicos sedimentados na defesa da dignidade humana.
Se uma pessoa possui um nível de fé que acredita que mesmo sendo vítima de um estupro, aquele filho é um benção divina e deve ser gerado, ótimo. Que dê a luz a este filho e o crie com todo o amor que qualquer criança merece. O problema está em exigir que todos tenham esta mesma opinião e tomem a mesma decisão.
A visão da igreja sobre o aborto não diz respeito ao enfrentamento jurídico penal desta questão. O pecado não encontra punição em um ordenamento jurídico, isto é assunto para a fé e religião de cada um.
Discutir o direito ao aborto não é defender uma obrigatoriedade em abortar, tampouco dar início a uma política de incentivo, mas apenas debater o direito desta mãe, vítima de estupro, optar em ter ou não este filho.
Como dito, deveríamos estar discutindo coisas bem mais à frente, mas nossos legisladores seguem se esforçando para nos mostrar que nada está tão ruim que não possa piorar.
A lógica moralista, religiosa, impregnada de um forte componente machista dita o pseudo argumento de defesa da vida.
Se colocar em defesa da vida é esconder o verdadeiro debate, é locar-se em ponto seguro, pois quem discutirá contra a vida? A velha prática de redução da complexidade em binômios convenientes.
Não se defende a vida, pois a vida é muito mais que respirar e ter uma vida extra uterina. Qual a vida terá uma criança que foi gerada a partir de um crime de estupro? Qual a vida terá uma criança que sua própria mãe não lhe consegue ter afeto pois sempre rememora a violência sofrida?
São questionamentos duros, difíceis, mas fundamentais se quisermos falar a respeito da vida dessas pessoas.
Portanto, ninguém que defende essa liberação de aborto, está preocupado com a vida que essas pessoas terão. Defender a vida é muito mais que isso, é defender condições de uma vida digna. Ou alguém duvida que este filho gerado de um estupro terá grandes chances de ser entregue à adoção?
Ah, mas podem ser adotados por uma família que os queiram, se isso acontecer ótimo, mas e se não? Mais uma pobre vida lançada ao acaso de sobreviver sozinha num mundo que finge defender o seu direito de viver.
Político criminalmente falando, devemos superar a hipocrisia e saber que essas mulheres seguirão fazendo abortos clandestinos e os problemas de saúde pública seguirão ocorrendo.
Ser contra o aborto e entender a vida como uma benção, independentemente das condições que fora concebida, não outorga a ninguém o direito de impor isso aos outros. Se uma pessoa é contra o aborto nesses casos, que não aborte caso se veja nessa situação, mas não retire dos outros a possibilidade de decidir.
A decisão sobre ter ou não esse filho, deve ser da mãe vítima desse crime, ninguém, muito menos o Estado, tem o direito de decidir por ela.
Portanto, preceitos morais e religiosos devem ser usados para guiar a vida de cada um, mas nunca servir como parâmetros de políticas de Estado, mormente na eleição de condutas a serem criminalizadas.
Se quisermos seguir acreditando que não se trata de um machismo religioso e conservador, tudo bem, mas façamos uma reflexão: se homens engravidassem estaríamos discutindo tudo isso sobre aborto?
Porque não vemos as mesmas propostas punitivistas em desfavor dos pais que abandonam os seus filhos? Ou que apenas lhes dão o nome mas nunca participam de suas vidas? Esta é a questão a ser debatida, o que está por detrás dos argumentos.
Escrito por: Daniel Kessler de Oliveira
Fonte: Canal Ciências Criminais