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De acordo com o art. 331 do Código Penal:

Art. 331. Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela:

Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.

Desacatar nada mais é do que “menosprezar a função pública exercida por determinada pessoa, ou melhor, ofende-se o funcionário público com a finalidade de humilhar a dignidade e o prestígio da atividade administrativa.”

O bem jurídico protegido é o respeito da função pública, sendo que a vítima primária deste delito é o Estado. O servidor ofendido é apenas o sujeito passivo secundário.

O Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que ficou conhecida como “Pacto de São José da Costa Rica“. Neste tratado internacional, promulgado pelo Decreto nº 678/92, foi previsto como um dos direitos ali consagrados a liberdade de expressão. Confira:

Artigo 13. Liberdade de pensamento e de expressão

1. Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e ideias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha.

2. O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei e ser necessárias para assegurar:

a. O respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou

b. A proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral públicas.

3. Não se pode restringir o direito de expressão por vias ou meios indiretos, tais como o abuso de controles oficiais ou particulares de papel de imprensa, de frequências radioelétricas ou de equipamentos e aparelhos usados na difusão de informação, nem por quaisquer outros meios destinados a obstar a comunicação e a circulação de ideias e opiniões.

4. A lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência, sem prejuízo do disposto no inciso 2.

5. A lei deve proibir toda propaganda a favor da guerra, bem como toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitação à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), há anos, vem decidindo que a criminalização do desacato contraria o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica.

Em 1995, a Comissão afirmou que as leis de desacato se prestam ao abuso, como meio para silenciar ideias e opiniões consideradas incômodas pelo establishment, bem assim proporcionam maior nível de proteção aos agentes do Estado do que aos particulares, em contravenção aos princípios democrático e igualitário (CIDH, Relatório sobre a compatibilidade entre as leis de desacato e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA/Ser. L/V/II.88, doc. 9 rev., 17 de fevereiro de 1995, 197-212).

Em 2000, a CIDH aprovou a Declaração de Princípios sobre Liberdade de Expressão onde reafirmou sua posição sobre a invalidade da tipificação do desacato:

“11. Os funcionários públicos estão sujeitos a um maior controle por parte da sociedade. As leis que punem a manifestação ofensiva dirigida a funcionários públicos, geralmente conhecidas como ‘leis de desacato’, atentam contra a liberdade de expressão e o direito à informação.”

Em suma, para a CIDH, as leis de desacato restringem indiretamente a liberdade de expressão, porque carregam consigo a ameaça do cárcere ou multas para aqueles que insultem ou ofendam um funcionário público. Por essa razão, este tipo penal (desacato) é inválido por contrariar o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

No Brasil, recentemente, houve um precedente que acolhe esta tese.

A 5ª Turma do STJ também decidiu que:

O crime de desacato não mais subsiste em nosso ordenamento jurídico por ser incompatível com o artigo 13 do Pacto de San José da Costa Rica.

A criminalização do desacato está na contramão do humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado – personificado em seus agentes – sobre o indivíduo.

A existência deste crime em nosso ordenamento jurídico é anacrônica, pois traduz desigualdade entre funcionários e particulares, o que é inaceitável no Estado Democrático de Direito preconizado pela CF/88 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos.

STJ. 5ª Turma. REsp 1640084/SP, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 15/12/2016.

OBS: O precedente acima foi tomado pela 5ª Turma do STJ, não havendo ainda decisões do Supremo Tribunal Federal sobre o tema. É provável, no entanto, que a Corte siga o mesmo entendimento.

Salienta-se que conforme entende o Supremo, os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil for signatário incorporam-se em nosso ordenamento jurídico com status de norma jurídica supralegal (RE 349.703/RS, DJe de 5/6/2009). Assim, a CADH é norma jurídica no Brasil, hierarquicamente acima de qualquer lei ordinária ou complementar, só estando abaixo, portanto, das normas constitucionais.

É importante destacar que na época em que a CADH foi aprovada no Brasil, ainda não havia a previsão do § 3º do art. 5º da CF/88.

O Pacto de San José da Costa Rica, por ser hierarquicamente superior ao Código Penal, não revogou o art. 331, mas sim o tornou inválido, conforme entendimento do STJ:

“No plano material, as regras provindas da Convenção Americana de Direitos Humanos, em relação às normas internas, são ampliativas do exercício do direito fundamental à liberdade, razão pela qual paralisam a eficácia normativa da regra interna em sentido contrário, haja vista que não se trata aqui de revogação, mas de invalidade” (STJ REsp 914.253/SP)

De acordo com os ensinamentos de Valério Mazzuoli, quando uma norma interna é incompatível com um tratado ou convenção internacional, dizemos que deve ser feito um controle de convencionalidade:

“Nesse sentido, entende-se que o controle de convencionalidade (ou o de supralegalidade) deve ser exercido pelos órgãos da justiça nacional relativamente aos tratados aos quais o país se encontra vinculado. Trata-se de adaptar ou conformar os atos ou leis internas aos compromissos internacionais assumidos pelo Estado, que criam para estes deveres no plano internacional com reflexos práticos no plano do seu direito interno. Doravante, não somente os tribunais internacionais (ou supranacionais) devem realizar esse tipo de controle, mas também os tribunais internos. O fato de serem os tratados internacionais (notadamente os de direitos humanos) imediatamente aplicáveis no âmbito do direito doméstico, garante a legitimidade dos controles de convencionalidade e de supralegalidade das leis no Brasil”

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, quando do julgamento do caso Almonacid Arellano y otros v. Chile, passou a exigir que o Poder Judiciário de cada Estado Parte do Pacto de São José da Costa Rica exerça o controle de convencionalidade das normas jurídicas internas que aplica aos casos concretos.

Ressalta-se que o fato de o desacato não mais ser punido não significa que o indivíduo que ofendeu a honra de um servidor público não possa ser responsabilizado.

Dependendo da situação concreta e das palavras proferidas ou gestos praticados, o ofensor poderá responder por outros crimes, como: calúnia, difamação ou injúria. Neste caso, contudo, a vítima será a pessoa física, ou seja, o próprio servidor ofendido (e não mais o Estado).

O que a CIDH repudia é um tratamento penal mais gravoso para ofensas praticadas contra servidores públicos porque isso representaria uma restrição à liberdade de expressão e de controle social sobre as atividades da Administração Pública.

Bibliografia:

  • MASSON, Cleber. Direito Penal esquematizado. 9ª ed., São Paulo: Método;
  • MAZZUOLI, Valério. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2ª ed. V. 4. São Paulo: RT.

Fonte: Jusbrasil