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No recente julgamento do Habeas Corpus 138.565/SP, o Supremo Tribunal Federal deparou-se com uma situação bastante recorrente no dia-a-dia dos processos penais por tráfico ilícito de entorpecentes no país: a invasão de residências sem ordem judicial, ao argumento do flagrante delito.

Os casos são bastante típicos e se repetem por todos os estados, envolvendo as polícias civis e militares. Existe, inegavelmente, a condescendência de uma parcela considerável da opinião pública para com estas ilegalidades, haja vista que as ações resultam efetivas no sentido de localizar e apreender objetos ilícitos, especialmente armas e drogas.

O problema está situado em áreas de risco, sobretudo comunidades de baixa renda, onde o crime organizado encontra fácil infiltração, e pode ser constatado na forma como estes atos vêm se desenvolvendo, isto é, com flagrante desrespeito a ditames convencionais, constitucionais e legais.

Tais caso têm sido relegados a um segundo plano pelo Judiciário ao longo dos anos, na medida que raramente essas nulidades são declaradas, em face do perverso recurso à presunção de veracidade dos depoimentos dos agentes policiais.

Isso tem resultado num alto índice de condenações criminais pelo crime de tráfico de pessoas flagradas mantendo entorpecentes em depósito, o que em tese poderia configurar apenas o delito de posse de entorpecentes, que foi despenalizado (RE 430.105) pela Lei 11.343/06.

As prisões por tráfico de drogas são atualmente as maiores responsáveis pelo caos vivenciado pelo sistema carcerário nacional (“estado de coisas inconstitucional”).

A certeza da condenação do flagrado, aliada à falta de investigação adequada dos responsáveis pelas ilegalidades, acaba dando margem à prática de inúmeros outros abusos policiais, como os conhecidos “enxertos” de drogas não pertencentes ao cidadão abordado, extorsões, corrupção e tortura.

No caso concreto julgado pelo STF, os policiais realizavam operação de combate ao tráfico no interior de São Paulo quando suspeitaram que um indivíduo estaria filmando a ação policial. Sob este pretexto, fizeram a abordagem ao sujeito e adentraram sua residência, vasculhando a casa, sem qualquer autorização para tanto.

Nas buscas, acabou sendo encontrada uma pequena quantidade de “crack” e cocaína, razão pela qual foi dada voz de prisão em flagrante pelo crime de tráfico (art. 33 da Lei 11.343/06). O suspeito permaneceu preso de julho a novembro de 2016, até obter a liberdade.

Sua defesa impetrou HC junto ao TJSP, sustentando a nulidade da apreensão, já que não havia mandado judicial de busca e apreensão para aquele local. A liminar foi negada, o que levou a defesa a impetrar novo HC no STJ, cuja liminar também restou indeferida. O terceiro HC foi direcionado ao STF e acabou distribuído à relatoria do Min. Ricardo Lewandowski, na 2ª Turma.

O Ministro concedeu a liminar, para imediatamente revogar a prisão. No julgamento do mérito, o relator afastou o óbice da Súmula 691 (“Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar”), ante a particularidade do caso, e destacou que um dos princípios mais sagrados da nossa Constituição é aquele que estabelece a inviolabilidade da casa dos cidadãos (art. 5º, XI, da CF).

Segundo ele, é evidente que ninguém convida a polícia para proceder à invasão em sua casa e vasculhar seus pertences. No caso em julgamento, a pequena quantia de psicotrópicos apreendidos também já revelaria que não se tratava de caso de tráfico, até porque nenhum outro objeto que pudesse indicar o contrário fora encontrado, tal como dinheiro trocado, balanças, anotações, etc. Ainda que as drogas fossem do acusado, a hipótese seria de posse de entorpecente para uso pessoal (art. 28 da Lei 11.343/06).

Lewandowski acabou acompanhando pelos Ministros Edson Fachin e Celso de Mello. O último, aliás, manifestou sua preocupação ao constatar que os policiais queriam impedir que o cidadão filmasse a abordagem, o que é permitido, já que não vivemos num regime ditatorial. Uma busca sem mandado só seria justificável pela fundada suspeita da prática de crime. Como não havia indícios nesse sentido, considerou que as provas foram obtidas por meio ilegal, o que as torna ilícitas.

O julgamento trouxe à tona um precedente de 2015 da Corte, o RE 603.616/RO, com repercussão geral admitida, onde o STF reconheceu a possibilidade de busca e apreensão domiciliar sem mandado judicial nos casos de crime permanente, cuja situação de flagrância se protrai no tempo.

Para o STF, nos casos excepcionados pela Constituição (flagrância, desastre e prestação de socorro) não se aplica a limitação temporal do período diurno para a entrada na residência.

Porém, há necessidade de um controle judicial, ainda que posterior, sob pena de esvaziamento do núcleo fundamental da garantia contra inviolabilidade da casa e da garantia contra ingerências arbitrárias ao domicílio (art. 11, 2, do Pacto de São José da Costa Rica e art. 17, 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).

Naquela ocasião, a Suprema Corte assentou que “A entrada forçada em domicílio, sem uma justificativa prévia conforme o direito, é arbitrária. Não será a constatação de situação de flagrância, posterior ao ingresso, que justificará a medida. Os agentes estatais devem demonstrar que havia elementos mínimos a caracterizar fundadas razões (justa causa) para a medida”. Acabou fixada a seguinte tese:

“A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade dos atos praticados”.

No caso concreto do Recurso Extraordinário, entendeu-se, à época, que haveria as fundadas razões para a suspeita do flagrante de tráfico. Já no HC recém julgado pela 2ª Turma, ficou demonstrado que a pouca quantidade de droga, aliada à falta de apreensão de outros objetos seria insuficiente para justificar a invasão do domicílio.

Pelo entendimento firmado pelo Pretório Excelso, portanto, a avaliação sobre a validade da invasão domiciliar passa pela existência ou não de uma investigação prévia sobre eventual prática de crime permanente.

O art. 33 da Lei de Tóxicos, na modalidade de manter entorpecentes em depósito, caracteriza crime permanente, ou seja, cujos efeitos perduram no tempo, enquanto a droga for mantida em depósito pelo agente, admitindo-se, pois, a prisão em flagrante, a qualquer tempo, durante o iter criminis, uma vez que o crime segue sendo cometido (art. 302, I, do CPP).

A Constituição assegura que a “casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”.

Para aferir a validade da busca sem mandado, então, deve-se pressupor que não há consentimento do morador para a entrada. Tal consentimento deve ser provado pelos agentes.

Nesse sentido, não bastam meras declarações, supostamente com veracidade presumida, o que é um verdadeiro absurdo ante as tantas arbitrariedades praticadas pela polícia brasileira. É preciso prova séria e inconteste da voluntariedade do ato de franquear a entrada dos agentes na casa pelo cidadão. Do contrário, a busca já inicia ilegal, produzindo prova ilícita, que contamina tudo o que dela deriva no processo.

Na hipótese de flagrância, excepcionada pela Constituição, os critérios para verificação da legalidade passam pela comprovação de justa causa, ainda que depois de efetuada a busca. A justa causa que o STF considera apta a embasar a invasão domiciliar sem mandado é a apresentação de “fundadas razões” que amparem a crença de que um crime está ocorrendo na residência naquele instante.

Caso isso exista, pode facilmente ser demonstrado por indícios que devem ser colhidos pelos agentes momentos antes de ingressarem na casa, seja por fotos, vídeos, depoimentos, escutas autorizadas, etc. Desta forma, estarão resguardando a validade daquela operação e garantindo que as provas obtidas sejam válidas. A justificativa é que poderá ser posterior.

O que não pode ocorrer é a invasão com posterior colheita de provas, pois a busca já terá sido ilícita na sua origem, sendo qualquer apreensão viciada, por desrespeito à formalidade essencial ao ato, que é a obtenção de um mandado judicial com esta finalidade específica, observando todos os requisitos legais. Logo, a situação de flagrância deve ser demonstrada antes, a fim de embasar a entrada na casa.

O cumprimento desta simples orientação já traria uma lisura hoje inexistente na grande maioria dos processos criminais que iniciam por esta constatação informal do flagrante. Isso pressupõe, porém, o reconhecimento da validade das normas pelas polícias, o que só se concretiza através da sanção judicial às ilegalidades (reconhecimento das nulidades) e punição adequada, célere e certa aos agentes que cometerem esses ilícitos.

Trata-se, ao fim e ao cabo, do respeito às garantias fundamentais incorporadas pela Constituição, que revelam a forma de Estado no qual desejamos viver.

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Fonte: Canal Ciências Criminais