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O delito de lavagem de dinheiro, também conhecido em alguns sistemas jurídicos como lavagem de ativos ou branqueamento, é, talvez, o crime “símbolo” da criminalidade organizada, sobretudo em âmbitos de delinquência caracterizados pela grande movimentação de valores.

A lavagem, de maneira geral, configura-se como a ação de mascaramento, escamoteamento, do produto do crime por meio de atividades econômicas que visam dar aparência de licitude a tais ativos, para, após, reinseri-los na economia formal.

O ato de lavar dinheiro, pois, tem por finalidade fazer com que o produto de uma infração penal antecedente – diz-se infração porque abarcam tanto contravenções penais quanto crimes – possa retornar à economia e ser usufruído como se legítimo fosse.

Aquele que comete delitos em que se movimentam grandes quantias de capitais, seguramente, tem como desiderato a utilização futura desse capital, como se fizesse parte de seu capital lícito desde sempre.

O crime de lavagem de dinheiro surgiu nas mais variadas legislações internacionais com o fim de impedir que as organizações criminosas, com destaque aos narcotraficantes, pudessem aproveitar os ganhos do crime.

É dizer, ainda que não se consiga impedir a infração penal antecedente, que, ao menos, seja possível impedir que ela gere algum tipo de lucratividade ao autor do delito, sobretudo que adentre na economia formal.

O objetivo é fazer com que o criminoso tenha que manter-se “sentado” sobre o seu dinheiro sujo e facilite, assim, a ação dos órgãos de persecução penal.

Por isso mesmo o direito penal moderno se preocupa em demasia com o delito de lavagem de dinheiro, pois, como dito, está intimamente ligado a grandes contextos criminosos, estando quase que sempre inserto na órbita de sofisticados organismos delitivos.

A sofisticação, aliás, é uma das principais características da lavagem de ativos. Não que ela seja a regra de todas as condutas típicas de lavagem, mas, em grande parte dos casos, ela se faz presente.

A reintegração de capital “sujo” na economia formal não é uma atividade simples e, não raras vezes, exige um complexo conjunto de transações econômicas com a finalidade de mascaramento do produto do crime, a começar pelo ato de ocultar ou dissimular a origem desses bens.

Como é cediço, a lavagem de dinheiro visa afastar o capital de seu passado delinquente, tendo, na maior medida possível, aparência de licitude. Uma das primeiras ações daquele que branqueia o ativo é no sentido de ocultar tal origem, aplicando esses valores em atividades lícitas.

É comum ver o fracionamento desses valores em diversas transações financeiras pequenas realizadas em contas bancárias de terceiros ou laranjas, na compra de imóveis em nome de outrem, na compra de obras de arte e jóias sem identificação do adquirente, aplicação em atividades financeiras de “fachada”, como estacionamentos e óticas, sem ostentar a condição de sócio.

Enfim, a primeira atitude costuma ser no intuito de ocultar a origem desse patrimônio ilegal.

O ato de ocultar, como visto, não se confunde com o exaurimento da infração penal antecedente. A ocultação não pode consistir em ato de fruição do produto do crime sem se preocupar em obliterar o passado delitivo dos valores. Comprar um imóvel em nome próprio com dinheiro sujo, por exemplo, não é lavagem. A ocultação consiste justamente em mascarar a “história criminosa” do capital.

E o ato de ocultação é essencial na definição da natureza do crime, se permanente ou instantâneo, definição de extrema relevância para que se possa falar da incidência de outros institutos penais.

A discussão, como posta, não é vazia e tem grande relevância quando estamos diante de questões como a prisão em flagrante ou a prescrição da pretensão punitiva. Tanto é assim que, recentemente, o Supremo Tribunal Federal, na Ação Penal 863, envolvendo um parlamentar paulista, trouxe à tona esse problema.

A Suprema Corte definiu o crime de lavagem de dinheiro, na modalidade ocultação – não se olvide que o crime pode ser praticado noutras modalidades – como um delito permanente.

Com efeito, a prescrição somente passaria a correr no momento em que cessasse a prática do crime, com a comunicação da autoridade persecutória. Da mesma forma, a prisão em flagrante passaria a ser possível a qualquer momento antes da cessação da ação criminosa.

No caso concreto, o réu teria supostamente ocultado a origem delitiva do produto do crime depositando-o em doze contas-correntes de instituições bancárias das Ilhas Jersey entre 1997 e 2006.

Para o STF, quem oculta o produto do crime e o mantém oculto, prolonga a consumação delitiva até que reste conhecida a existência dos valores conspurcados.

O crime não estaria consumado com o simples ato de encobrimento dos ativos maculados. Seria como equiparar a ocultação dos bens ao crime de ocultação de cadáver – já visto como delito permanente pela jurisprudência. Como o réu teria o domínio do encobrimento, podendo desfazê-lo quando quisesse, forçoso seria reconhecer o estado de permanência.

Porém, não nos parece a melhor solução, principalmente se colocada diante da proteção do bem jurídico tutelado pela norma, qual seja, a administração da justiça.

O crimes permanente, como asseverado por Cezar Roberto Bitencourt (2011, p. 255), “é aquele crime cuja consumação se alonga no tempo” e, por conseguinte, mantém-se lesionando o bem jurídico tutelado pela norma. São os ditos crimes de gerúndio, pois estão acontecendo e, com isso, lesionando um objeto de tutela penal. Caso que não ocorre na ocultação de ativos que são produtos de infração penal.

Explicamos.

A lavagem de dinheiro é um delito que viola a administração da justiça, porquanto tem por objetivo encobrir a origem maculada do capital, dando-lhe aparência de licitude. Quer-se, portanto, impedir que os órgãos de persecução penal localizem os bens.

É crime assemelhado ao favorecimento real, consoante previsto no artigo 349 do Código Penal, não obstante permita a punição do autor do crime antecedente, caso que não ocorre no favorecimento. Com efeito, a violação do bem jurídico resulta do comportamento que impede a autoridade persecutória de identificar a transação de lavagem de dinheiro. Nada mais.

Tal comportamento de afetação da administração da justiça é oriundo da simples ação de ocultar o bem, mesmo que este bem se mantenha oculto por toda a eternidade. Ou seja, os efeitos podem ser permanentes, mas o ato que gerou a ocultação é instantâneo.

A consumação se dá no escamoteamento inicial.

É nesse momento que o autor afeta a administração da justiça. Ainda que ele tenha o poder de interrupção durante todo o período de encobrimento, isso não torna o crime permanente […]. A característica principal do crime permanente não é a disponibilidade da reversão da lesão pelo autor, mas a continuidade do comportamento delitivo ao longo do tempo (BOTTINI; BADARÓ, 2016, p. 135).

A manutenção do encobrimento, portanto, é mero desdobramento do primeiro ato de ocultação, assim como ocorre, por exemplo, no favorecimento real – pelo qual se reconhece a consumação com o primeiro ato de esconder o produto do crime, mesmo que ele dure por anos.

Com isso, é de se ver que o delito de lavagem de dinheiro não é delito permanente, mas, sim, instantâneo de efeitos permanentes, não se podendo falar em contagem de prescrição ou até mesmo prisão em flagrante com o simples ato de descobrimento do escamoteamento.

Ocultar não é o mesmo que manter em depósito ou possuir, que são atos que pressupõe a continuidade de afetação do bem jurídico. A ocultação ocorre de forma instantânea. As demais movimentações do bem são meros desdobramentos da conduta inicial.

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REFERÊNCIAS

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BADARÓ, Gustavo Henrique. Lavagem de dinheiro: aspectos penais e processuais penais. 3. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

Escrito por: Douglas Rodrigues

Fonte: Canal Ciências Criminais