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O Direito Penal oferece aos seus estudiosos e aos que militam a partir do instrumental que nele se opera uma diversidade de análises bastante extensa e excitante.

O fato de lidar com valores sensíveis como liberdade, honra, vida e, ao mesmo tempo, sofrer as influências diretas das políticas estatais, acrescenta um ingrediente peculiarmente complexo a este ramo do direito.

Se adicionarmos a esta receita as lições trazidas pela criminologia crítica, que bem demonstraram o fato de que os processos de criminalização respondem de forma verificável à estrutura econômica em que estes se concretizam, a profundidade exigida para pesquisa atinge um grau ainda maior de cuidado.

Em virtude disso, as tentativas de reduzir o direito penal a uma lógica cartesiana de aferição, trabalhando de modo simplista com racionalizações do tipo causa/efeito, crime/castigo, fato/norma, adequação/dosimetria, se revelam desastrosas. O discurso mais perigoso e medíocre em direito penal é o que se inicia enunciando que a “regra é clara”.

A dificuldade que está sendo apontada fica clara quando tratamos das questões envolvendo o dolo, sua constatação, apreciação temporal, avaliação de intensidade, capacidade de compreensão e autodeterminação segundo esta compreensão, enfim, todos os meandros daquilo que se passa num “ambiente” que impossibilita a aferição observacional ou verificável por meio de instrumentos mecânicos.

Dito de modo direto: tudo aquilo que se passa na mente humana.

Inúmeras tentativas foram feitas, ao longo do tempo, para lidar com esta limitação. O finalismo trouxe o tema ao centro de debate, ao exigir, para configuração legal do delito, a demonstração do dolo como elemento estruturante do próprio tipo penal. Não se pode negar o fato de que essa “revolução” na teoria do delito se mostra coerente com os achados das ciências humanas a respeito da liberdade, consciência, vontade e motivação.

Porém, dificuldades surgiram. Críticas também. A principal delas se volta para a tentativa do finalismo de partir de dados ônticos para vincular as decisões jurídicas (GRECO, 2000, p. 5).

Muito se escreveu sobre o assunto e não é o objetivo deste texto reascender por completo este debate. Há quem diga que ele está completamente superado, na Europa ao menos, ao se aceitar os preceitos funcionalistas de normatização moderada (Roxin) ou extrema (Jakobs) para os elementos analíticos do delito.

A provocação que gostaria de trazer, de modo breve neste texto, tem que ver com o homicídio “privilegiado”. O art. 121 § 1º do CP versa:

Art. 121. Matar alguém: Pena – reclusão, de seis a vinte anos. Caso de diminuição de pena § 1º Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida a injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço.

A questão que se pretende oferecer à reflexão tem que ver com a violenta emoção e a exigência temporal de sua manifestação, ou seja, “logo em seguida”.

As mais recentes pesquisas na área de psicologia cognitiva trazem para este debate algumas lições relevantes. Ao desconstruir a dicotomia entre razão e emoção, demonstram que estas não podem ser vistas como elementos contrários, como se a razão fosse uma contraposição à emoção ou sensação.

Na realidade, é amplamente aceito hoje o conceito de que sensação, emoção e emoção refletida são os significantes mais adequados para falar sobre nossa percepção da realidade e o modo como reagimos a ela. Entres estes não se estabelece um contraponto e nem se pode delimitar de modo detalhadamente preciso as fronteiras de sua manifestação.

Ainda assim, é possível afirmar que entre a sensação, como sendo a significação que damos aos sentidos com pouquíssima reflexão, e a emoção refletida (que seria análoga ao que se conhecia como “razão”) há um continuum (FIORELLI, 2016).

Obviamente os apontamentos acima foram extremamente resumidos para o atingimento das pretensões deste texto. O assunto é complexo e sofre desenvolvimentos, acréscimos e alterações conceituais rotineiramente, à medida que as ciências humanas aprimoram suas conclusões ou obtém dados que contrariem as conclusões anteriores.

Porém, algo que parece bastante claro com base nestas observações é que não se pode pensar o ser humano a partir de categorias mecanicistas ou meramente sistêmicas. Justamente por isso, alguns crimes de homicídio oferecem desafios peculiares para o sistema penal.

Qualquer tentativa de reduzir a complexidade do assunto acaba caindo em digressões que almejam apenas racionalizar o desejo de uma punição severa para aquilo que nos choca.

Nessas tentativas, por um lado se cria uma tautologia em torno das questões relativas ao quão violenta precisa ser a emoção ou quão imediata precisa ser a reação à injusta provocação.

Por outro lado, são elucubrados argumentos fundados na lógica da “justiça” de talião, enfeitados com frases de efeito voltadas à proteção da vida, em geral sem se estabelecer a conexão entre a proteção pretendida e a punição.

Explicitando: a vida da vítima já não pode ser protegida; a vida no agente não será protegida, ao contrário, será submetida ao ambiente mais perigoso dentro de nosso território (as penitenciárias); a presunção de que outras vidas serão protegidas porque o agente estará neutralizado não condiz com provas empíricas, já que não se pode afirmar que alguém que cometeu um homicídio passional o fará novamente simplesmente pelo fato de o ter o feito uma vez.

Assim, resta apenas a justificação da severidade da pena sob o argumento retributivo, que ganha neste caso genuína feição vingativa (talião).

A problemática apontada aqui se reproduz em um número elevado de questões penais. A (re)normatização do dolo, sofisticando o pensamento neokantista, parece apenas empurrar para culpabilidade o problema de avaliar o impacto das emoções na vontade, na autodeterminação do agente.

SCHÜNEMANN escancara essa hipótese, entendendo que se deve compreender o elemento cognoscitivo do dolo na tipicidade, enquanto na culpabilidade seria valorado o elemento volitivo (com seu umbilical ingrediente “emocional”) (GRECO, 2000, p. 13).

A proposta de ROXIN (2002) de embeber o sistema com critérios de política-criminal é muito mais segura (e democrática) que a tentativa de fundar o sistema penal nas expectativas normativas (JAKOBS, 1996), mas ainda assim não se pode afirmar que resolve por completo o problema apontado.

O fato é que estamos amarrados a problemática questão de tentar compreender algo que escapa a nossa capacidade plena. O caminho mais seguro parece ser assumir estas limitações e valorar o que será feito delas em termos constitucionais, democráticos, ao invés de tentar construir discursivos elegantes que objetivam, retirado o véu pudico de sua retórica cientificista, reencarnar o “olho por olho”.

PS: eu pretendia escrever sobre o mapa da violência, disponibilizado esta semana, mas ao analisar o mesmo me questionei sobre o que haveria, de fato, a escrever. Pode ser resumido didaticamente: mais do mesmo – o retrato de um país onde classe social, cor da pele, gênero e idade definem a expectativa diferencial de vida assustadoramente.

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REFERÊNCIAS 

GRECO, Luis. Introdução à dogmática funcionalista do direito. Revista brasileira de ciências criminais, v. 8, n. 32, p. 120–163, out/dez, 2000, p. 5

FIORELLI, José Osmir. Psicologia Jurídica. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2016

ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Trad. Luís Greco – Rio de Janeiro: Renovar. 2002.

JAKOBS, Gunther. La imputación objetiva en Derecho Penal. Civitas: Madrid, 1996.

Escrito por: Paulo Incott

Fonte: Canal Ciências Criminais