Neurociência é uma ciência interdisciplinar encarregada do estudo da estrutura e de todas as funções, normais ou patológicas, do sistema nervoso. A revolução que essa relativamente nova área causou nos últimos anos diz respeito a uma melhor compreensão da própria “natureza” humana.
As novas descobertas científicas sobre a forma de funcionamento do cérebro rapidamente conduziram a novos questionamentos em diversos outros ramos do conhecimento, dentre eles o Direito, e mais especificamente o Direito Penal, que lida diretamente com comportamentos humanos.
Uma nova compreensão sobre as formas como decidimos nossas ações tem o potencial de influenciar como selecionamos a quem impor ou não castigos como resposta a comportamentos socialmente indesejados. Isso pode ter consequências diretas nas próprias bases teóricas sobre as quais o Direito Penal foi historicamente edificado.
Se no séc. XIX as ciências sociais tiveram um papel-chave na evolução do pensamento penal, há quem argumente que, no séc. XXI, este papel poderá ser ocupado pelas ciências do cérebro.
As neurociências já são capazes de identificar causas naturais de mudanças comportamentais importantes que levam pessoas a praticarem determinadas condutas. Situações que até 40 anos atrás seriam tratadas como fatos culpáveis, hoje, graças aos recursos da neuroimagem, são encaradas como patologias das quais a pessoa não pode ser responsabilizada.
Isso levanta um sério questionamento para o Direito Penal: nossos desconhecimentos do passado não teriam, então, sido responsáveis por condenações injustas?
O professor Bernardo Feijoo SÁNCHEZ (2012), catedrático da Universidade Autónoma de Madri, fornece uma resposta que retira dos juristas o peso que tal ignorância pode representar.
Entende que aqueles que foram condenados em função de não dispormos de conhecimentos para encontrar uma alternativa à sua responsabilidade não teriam sido tratados injustamente pela sociedade.
Isso porque o ordenamento jurídico, como uma obra humana, só pode garantir aos cidadãos que a sua culpabilidade será valorada de acordo com os melhores conhecimentos disponíveis naquele momento.
Sánchez é crítico da transposição de concepções sobre liberdade e responsabilidade da Neurociência de forma automática ao Direito Penal.
Para os neurocientistas, na medida em que não existe uma divisão clara entre mente e cérebro e que a nossa atuação consciente representa uma ínfima parte de nossa atividade cerebral, todos estaríamos determinados em nossos comportamentos por processos que não poderíamos de fato controlar. A seguir-se à risca esse pensamento, portanto, ninguém poderia ser responsabilizado por seus atos. Seria o ocaso do Direito Penal.
Os novos estudos cerebrais nos demonstram hoje que, quando nos tornamos conscientes de que tomamos uma determinada decisão, o cérebro já induziu esse processo.
Isso traz à tona a dúvida sobre se as decisões humanas escapam de nosso controle e, consequentemente, se devemos ou não abandonar o conceito de responsabilidade pessoal.
Neurocientistas como Gerhard Roth, Wolfgang Prinz, Wolf Singer, Francisco Rubia e Benjamin Libet passaram a questionar a liberdade de escolha do indivíduo, pois ela seria pré-condicionada pelo cérebro.
Esses estudiosos vêm demonstrando que muitas das bases filosóficas que historicamente construíram o sistema de imputação jurídico-penal talvez estejam erradas.
Com a negação da liberdade, não se pode conceber nem imputabilidade nem culpabilidade, de maneira que não se poderia castigar aqueles membros da sociedade que transgridem as leis que nós mesmos criamos para permitir uma convivência pacífica.
LIBET (1999) trabalha com a tese de que uma decisão consciente (“arranque da vontade”) seria precedida por um “potencial de disposição”, que não pode ser percebido ou influenciado pela pessoa, razão pela qual essa decisão consciente se encontra predeterminada pelo potencial de disposição.
O cérebro inicia processos inconscientes antes que a pessoa seja consciente de sua vontade e trabalha com uma ficção de uma autonomia da decisão de vontade. Na fase consciente, o que ocorre é uma espécie de “possibilidade de veto” que, no máximo, poderia frear as ações já postas em marcha inconscientemente. Desta maneira, essa possibilidade de veto garantiria apenas uma possibilidade residual de controle pelo indivíduo.
Os neurocientistas não discutem que as pessoas tomam decisões (ou, em termos dogmáticos, que atuam com dolo ou culpa), mas sim que essas decisões não seriam totalmente livres, porém determinadas por uma série de condições que não podem ser controladas conscientemente.
O que colocam em questão não é se nós, seres humanos, temos capacidade para controlar instrumentalmente nossas ações, mas que todo processo mental seria, em última instância, reconduzível a uma explicação científica e, portanto, causal.
Em termos dogmáticos, essas críticas não afetam tanto a teoria do injusto (capacidade de ação), mas fundamentalmente a teoria da culpabilidade. Não se trata de estudar se as pessoas fazem o que decidiram fazer, mas porque decidiram em um determinado sentido.
A Neurociência não afirma que seria impossível constatar no caso concreto se o sujeito poderia atuar de outro modo ou não; sugere que talvez o sujeito nunca pudesse ter atuado de outro modo, isto é, que não existiriam alternativas de atuação que se possam eleger voluntariamente.
É o velho tema do “livre arbítrio”, posto em xeque por novas descobertas e concepções, tema que passaremos a abordar em nossas próximas colunas.
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REFERÊNCIAS
LIBET, Benjamin. Do we have free will?. Journal of consciousness studies, v. 6, n. 8-9, p. 47-57, 1999.
SÁNCHEZ, Bernardo José Feijoo. Derecho penal de la culpabilidad y neurociencias. Thomson Reuters Aranzadi, 2012.
Escrito por: Carlo Velho
Fonte: Canal Ciências Criminais