Acredito que pensar o direito como algo descolado do mundo real seja um dos principais erros cometidos por juristas em todo lugar.
Estamos no meio da semana e já testemunhamos a infame história do magistrado que considerou a homossexualidade uma doença, ignorando completamente os avanços na medicina, na biologia e na psicologia sobre o assunto.
É um pecado cometido não apenas por juristas, mas também por legisladores, que insistem em criar dispositivos distantes da realidade social. Em um primeiro momento, pode até parecer que este erro estaria associado a falta de experiência de mundo dos detentores do poder estatal, na melhor das hipóteses.
Contudo, este equívoco não é exclusivo de magistrados, administradores ou legisladores, estando todos os operadores do direito sujeitos a cometê-lo.
Ainda que não há quem queira cometer tamanho equívoco de forma proposital, muitos o cometem não por má-fé, ou distanciamento da realidade social, mas pelo raciocínio limitado ensinado em nossas academias.
Muitas vezes a fictícia divisão entre direito público e privado condiciona geração atrás geração de juristas a ter uma visão mecânica do ordenamento jurídico, apreendendo a realidade em uma falsa dicotomia.
Todavia, esquecem-se que a realidade é una, não estando nenhum ramo do direito alheio aos outros, como se existissem em uma realidade própria. Daí a estranheza de meus colegas toda vez que defendo o Direito do Trabalho como uma eficaz forma de política criminal.
Política criminal, na definição de Heleno Fragoso, consiste na “atividade que tem por fim a pesquisa dos meios mais adequados para o controle da criminalidade”. Na mesma linha, René Dotti a define como “conjunto sistemático de princípios e regras através dos quais o Estado promove a luta de prevenção e repressão das infrações penais”.
Sabemos que a repressão é característica do direito penal. Defendo que o direito do trabalho é parcialmente responsável pela prevenção.
Levando em consideração que o contrato de trabalho é o que garante a subsistência do trabalhador e de sua família, é apenas lógico concluir que a fragilização do direito do trabalho resulta em uma fragilização da fibra social.
Neste sentido, trata-se o direito do trabalho não apenas um mecanismo de regulação e compensação da desigualdade entre empregador e empregado, mas uma importante ferramenta de prevenção a infrações penais através da estabilidade social.
Com o advento da Reforma Trabalhista, entretanto, a integridade desta fibra social está em risco, o que pode resultar em consequências graves no campo penal. A título de exemplo, usarei a jornada de trabalho de um cortador de cana que figurava como autor de um Recurso de Revista ao TST (RR 51175/2002-025-09-40.2).
O autor do recurso trabalhava das 7h às 17h10, tendo 1h30 de deslocamento para ir ao seu local de trabalho e tempo idêntico para voltar para casa. Desta forma, o trabalhador cumpria uma jornada de 10h diárias, de segunda a domingo, utilizando 3h adicionais todos os dias para se locomover.
Apesar do gasto de 13h diárias para garantir sua subsistência, o trabalhador em questão tinha as três horas adicionais integradas à sua jornada de trabalho, conforme a súmula 90 do TST:
Súmula nº 90 do TST
HORAS”IN ITINERE”. TEMPO DE SERVIÇO (incorporadas as Súmulas nºs 324 e 325 e as Orientações Jurisprudenciais nºs 50 e 236 da SBDI-1)- Res. 129/2005, DJ 20, 22 e 25.04.2005 I – O tempo despendido pelo empregado, em condução fornecida pelo empregador, até o local de trabalho de difícil acesso, ou não servido por transporte público regular, e para o seu retorno é computável na jornada de trabalho. (ex-Súmula nº 90 – RA 80/1978, DJ 10.11.1978).
Entretanto, o art. 58, § 2º da reforma trabalhista suprimiu este entendimento:
§ 2º O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para o seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador, não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador.
As consequências desta mudança de entendimento são potencialmente devastadoras se analisadas em conjunto com outros elementos da reforma. No caso do cortador de cana citado há pouco, por exemplo, teremos uma situação onde o trabalhador terá sua remuneração mitigada, ainda que o gasto de força e energia seja o mesmo.
Nesta situação, o cortador de cana seria remunerado por 10h de trabalho, gastando inevitavelmente três horas não-pagas de deslocamento diariamente. Assim sendo, este trabalhador, que já trabalha de segunda a domingo, terá apenas 11h diárias para descanso, alimentação, lazer.
Ao mesmo tempo, nos centros urbanos, haverá notícia de pleno emprego. Uma falácia meramente estatística que será permitida por conta do contrato intermitente, onde na prática um mesmo empregado será registrado por várias empresas diferentes.
A situação dos trabalhadores que fazem “bico” continuará a mesma, mas as estatísticas apontarão que há geração de postos de emprego. Em virtude disto, aqueles que trabalham longe das grandes cidades poderão se sentir tentados a tentar a sorte, uma vez que a remuneração para o mesmo exaustivo trabalho foi severamente afetada por conta da supressão das horas utilizadas para locomoção da jornada de trabalho.
Caso isto de fato ocorra, o resultado é assustador. Uma urbanização desordenada poderá ser um grande desafio aos municípios despreparados para a situação, principalmente se não há novos postos de emprego a serem ocupados.
Nesta realidade, os centros urbanos enfrentarão um cenário verdadeiramente caótico, uma vez que os migrantes estarão em uma situação de desemprego e de ausência de moradia.
Desemprego este que poderá levar a miséria. Miséria esta que irá resultar em oportunidades escassas. Com oportunidades escassas, vem a subnutrição, o abuso de substâncias químicas e, inevitavelmente, aumento da criminalidade.
Esta é apenas uma das diversas intersecções entre o direito do trabalho e o direito penal, bem como apenas uma das diversas formas que a reforma trabalhista poderá ter consequências no campo penal.
Caberá às próximas gerações de juristas aprender raciocinar o direito como um todo, evitando ao máximo linhas de raciocínio confinadas apenas às suas áreas de atuação.
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Escrito por: Gustavo Moreira
Fonte: Canal Ciências Criminais