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42 detentos mortos. No mínimo 175 internos feridos. 322 detentos submetidos a tratamentos cruéis, desumanos e degradantes (incluindo agressões físicas, psicológicas e tratamentos humilhantes).

Violações aos artigos 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 8.1 (garantias judiciais) e 25, todos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH).

Foi assim que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2014) apresentou a demanda à Corte Interamericana, denunciando a responsabilidade internacional do Estado do Peru pela violação da Convenção em razão de atos perpetrados no interior do Presídio Miguel Castro Castro.

“Era interno do pavilhão 4B do Presídio Castro Castro quando aconteceram os fatos” (2014, p. 123). Foi assim que Raúl Basilio Gil Orihuela iniciou o seu depoimento. E continuou (2014, p. 123):

Na madrugada de 6 de maio de 1992, ouviu-se uma forte explosão que vinha do pavilhão 1A, onde se encontravam as mulheres. Houve disparos, bombas e gás lacrimogêneo. O calor era insuportável, havia corpos de mulheres no chão, e as que sobreviviam pediam ajuda. Foram usadas bombas incendiárias, que contêm gás de fósforo branco que, ao contato com o corpo humano, provoca ardência nas partes descobertas e nas fossas nasais, além de causar asfixia e “queimação” química dos órgãos internos e da pele. Considera que o propósito foi “matá-los a todos em massa”. Tratou-se de um ‘ataque militar’, ‘não houve ali nenhum motim’. As forças armadas combinadas mataram várias pessoas, e de dentro de um helicóptero destruíram o pavilhão 1A. A quantidade de feridos e mortos era considerável. Os internos decidiram sair gritando ‘não disparem, vamos sair’. Em pouco tempo, a testemunha ouviu rajadas de tiros e gritos, e quando saiu à soleira da porta de entrada do pavilhão, reconheceu vários mortos, entre os quais estavam Deodato Hugo Juárez e Janet Talavera. Homens fardados e encapuzados levaram Antonio Aranda e Julia Marlene à ‘cozinha’, onde estavam fuzilando internos. Os internos que sobreviveram foram colocados de bruços no chão cheio de vidro, sob a chuva, sem alimentação adequada, e foram maltratados, espancados, pisoteados e mordidos por cães. Os maus-tratos continuaram durante os meses seguintes. Em algumas revistas obrigavam os internos a sair nus nos pátios, os torturavam com bastões elétricos e os submetiam a revistas nas partes íntimas do corpo.

Além disso, apurou-se que diversas detentas, durante o procedimento que se denominou de “Operação Mudança 1”, foram violentadas sexualmente por agentes que deveriam representar a força e os olhos lei.

Luis Ángel Pérez Zapata (2014), também vítima e detento à época dos fatos, observou perante a Corte que a “Operação Mudança 1” teve início depois do “golpe de Estado de 5 de abril de 1992”, quando se iniciou a militarização do Presídio Miguel Castro Castro.

A operação estatal perdurou quatro dias – iniciou às 4h30 de 6 de maio de 1992 e durou até 10 de maio de 1992 – e foi instaurada a partir do Decreto Lei nº 25.421/92, que ordenou a reorganização do Instituto Nacional Penitenciário e encarregou a Polícia Nacional do Peru de controlar o sistema penitenciário.

A “Operação Mudança 1” surgiu sob o pretexto de que se fazia necessária a transferência das presas (mulheres) que se encontravam no Presídio Miguel Castro Castro, destinado a população carcerária masculina. Não obstante, Luis Ángel Péres Zapata, assim como outras vítimas e familiares inquiridos, desmentem a falsa mensagem vendida pelo governo; o que houve, na verdade, foi um ataque planejado. Um massacre aos presos (2014, p. 133):

Às 4h30 de 6 de maio de 1992, começaram as explosões feitas por ‘tropas combinadas’ do Exército e da Polícia. Utilizaram ‘armamento longo […] de guerra’, bombas de gás lacrimogêneo, bombas incendiárias e helicópteros de artilharia, que dispararam mísseis e foguetes contra o pavilhão 1A. As bombas incendiárias ‘ardem [por dentro] e retiram o oxigênio, [e] impedem a respiração. O ataque também aconteceu a partir do teto e das janelas dos outros pavilhões, onde estavam localizados os francoatiradores. (sic, grifos originais)

Helicópteros. Franco-atiradores. Bombas. Mísseis e foguetes. Esses recursos, e tantos outros, foram utilizados tendo como alvo um local fechado: uma penitenciária, habitada por pessoas enclausuradas e que não tinham condições mínimas de se defenderem. Uma penitenciária que custodiava pessoas que não faziam outra coisa que cumprir a penalidade (ou medida cautelar) imposta pelo Estado.

Sujeitos desarmados, cerceados da liberdade, inocentes ou não, culpados e arrependidos ou não, foram alvos de um ataque de guerra, em afronta à CADH.

O sofrimento tomou conta daquele presídio. A morte e a destruição lenta e dolorosa da personalidade de cada detento eram os objetivos máximos da política penitenciária: proibição de falar a língua materna; ausência de tratamento médico, ausência de fornecimento de alimentos e bebidas; xingamentos depreciativos; proibição de manutenção de contato com o mundo exterior (proibição de acesso de livros, rádio, televisão, jornais, etc.); proibição dos detentos de dialogar entre si, ler ou estudar, ou realizar qualquer tipo de trabalho; imposição de castigo aos que se recusassem a cantar o hino nacional; ausência de acesso a materiais de asseio pessoal (sabão, papel higiênico, roupas íntimas, etc.); manutenção em celas escuras, conhecidas como “buracos”; isolamento absoluto e manutenção dos presos sem vestimentas, são alguns exemplos dos tratamentos suportados por aquelas pessoas que estavam presas.

Apesar do Peru ter reconhecido, voluntariamente, a parcial responsabilidade por algumas atrocidades perpetradas, e da Corte Interamericana ter decidido pela responsabilização do Estado do Peru, o que sobressai disso tudo é a completa ineficácia das normas consagradas no Pacto de São José da Costa Rica.

O Estado do Peru, à época, já era signatário do Pacto e, mesmo assim, reduziu-o a um simples nada. E, no Brasil, lamentavelmente, a situação não é diferente: o sistema penitenciário pátrio é um dos piores do mundo!

A Lei de Execução Penal, que rege a matéria, não é respeitada. Ao contrário: condições insalubres, superlotação e ausência de controle estatal são a regra.

Ademais, criou-se, em prejuízo dos reclusos, balizas temporais não previstas em lei, como é o caso da famigerada data-base, tudo com o escopo de mantê-los presos por mais tempo que deveriam.

Pior do que isso é o aviltamento da Constituição Federal, que passa valer menos do que a vontade do julgador. No que tange a Convenção Americana de Direitos Humanos, a situação é ainda mais caótica: ela não é apenas inobservada; é desconhecida por muitos…!

Nessa linha, o Brasil, assim como o Peru, já foi alvo de denúncias na Comissão Interamericana de Direitos Humanos: o Presídio Central, de Porto Alegre, e o Presídio Urso Branco, localizado em Porto Velho, v.g, são velhos conhecidos da Comissão. Inobstante as diversas denúncias veiculadas, pouca melhoria houve a respeito.

A título de exemplo, em 2002, conforme Relatório n.º 81/06 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, verificou-se “um grave quadro de violência no Presídio Urso Branco. […], ocorreu uma chacina em que morreram 27 pessoas privadas da liberdade. Após este incidente houve mais de 60 mortes no interior da penitenciária […].”

Igualmente, diversos foram os relatos de que, em Urso Branco, era comum a prática do célebre “corredor polonês”, formado por “agentes da lei”, que, sadicamente, agrediam aos detentos, que eram ordenados a ultrapassar, desnudos, o corredor.

A crise das fontes jurídicas que nos acomete é de clareza solar. O decisionismo (aquilo que o julgador acha que é) tem preponderado sobre a Constituição Federal e sobre a CADH.

Eis o quadro: temos leis excelentes… que nunca foram aplicadas como deveriam!

Outrossim, é preciso afastar a intolerante crença de que os Direitos Humanos destinar-se-iam somente a humanos “direitos”. Primeiramente: o que seriam humanos direitos? E os humanos tortos ou não direitos, quem seriam? E quem define a distinção?

A toda evidência, o discurso que distingue humanos em direitos e tortos é moralista, falacioso, hipócrita e temerário: a diferença entre um sujeito direito e um nem tão direito assim é tão sutil quanto subjetiva. Ou seja: varia de pessoa para pessoa!

Não bastasse (e esta é a moral da história da presente coluna), essa crença intolerante conflita com a essência dos Direitos Humanos: eles existem, conforme Cançado Trindade (apud PIOVESAN, 2013, p. 57-58), justamente, para tutelar aqueles que precisam, vale dizer, eles não regem as relações entre iguais; operam “precisamente em defesa dos ostensivamente mais fracos.”

O problema, contudo, é que, no Brasil, de nada adianta Ter Direito a Direitos Humanos: aqueles que deveriam representar a força da lei (como, p. ex., o juízo de execução penal) e garantir a eficácia dos mais importantes textos políticos, são os primeiros a ignorá-los e a maculá-los, chancelando as mais graves – e inadmissivelmente impunes – atrocidades no ambiente prisional.

A saída, caros leitores, em tempos sombrios, é somente uma: resistência!

O Advogado – aquele chamado a socorrer, contra tudo e todos! – sempre foi a resistência e, parafraseando Vitorino Prata Castelo Branco (1965), na luta pelo que é justo, pelo que é de direito, incumbe-lhe armar-se cavaleiro e, desse modo, proteger o seu constituinte com o seu próprio peito.


REFERÊNCIAS

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Resolução 14/2013, Medida Cautelar nº 8-13: Assunto pessoas privadas da liberdade no “Presídio Central de Porto Alegre Brasil. Disponível AQUI.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório nº 81/06. Petição 394/02: Admissibilidade Internos Presídio Urso Branco, Rondônia Brasil. Disponível AQUI. Acesso em: 14/11/2016, às 23h45min.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Convneção Americana Sobre Direitos Humanos. Disponível AQUI. Acesso em: 12/11/2016, às 15h.

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Resolucao de 21 de setembro de 2005: As medidas provisórias a respeito da República Federativa do Brasil. Caso da Penitenciária Urso Branco. Disponível AQUI. Acesso em: 13/11/2016, às 23h30min.

Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos / Secretaria Nacional de Justiça, Comissão de Anistia, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito à liberdade pessoal: Presídio Miguel Castro Castro VS Peru. Trad. CIDH. Brasília : Ministério da Justiça, 2014.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. – 14. ed., rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2013.

PORTAL G1. Presídio Central de Porto Alegre tem maior lotação da história, diz juiz. Acesso em: 14/11/2016, às 23h.

Escrito por: Guilherme Espíndola Kuhn

Fonte: Canal Ciências Criminais