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Hoje tenho o privilégio de escrever a Coluna em coautoria com um grande irmão meu, além de exímio jurista: Luiz Fernando Falci da Fonseca. Guardem este nome, Senhoras e Senhores!

Escreveremos sobre um assunto que nos causa irresignação há muito tempo: a exigência, por parte da jurisprudência, de um requisito subjetivo para o reconhecimento do princípio da insignificância.

Inicialmente, sinala-se que, hodiernamente, não persistem dúvidas de que o preceito da insignificância, também chamado de princípio bagatelar, afasta a tipicidade material do fato e, por conseguinte, exclui a existência da própria infração penal, haja vista a inexistência de lesão grave ao bem jurídico tutelado, capaz de justificar a interferência do Direito Penal.

O Direito Penal, por sinal, por força do princípio da intervenção mínima, deve (ria) ser o último mecanismo de controle social, interferindo o menos possível na vida dos indivíduos, somente vindo à tona quando os demais ramos do Direito se revelarem insuficientes para a proteção do bem jurídico.

A propósito, o escólio de André Copetti (2000, p. 87):

Sendo o direito penal o mais violento instrumento normativo de regulação social, particularmente por atingir, pela aplicação das penas privativas de liberdade, o direito de ir e vir dos cidadãos, deve ser ele minimamente utilizado. Numa perspectiva política-jurídica, deve-se dar preferência a todos os modos extrapenais de solução de conflitos. A repressão deve ser o último instrumento utilizado […].

Ademais, como se sabe, o Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer a incidência do princípio da insignificância como causa excludente da tipicidade material (e, assim, da existência do crime), consagrou quatro vetores que orientam a sua aplicação, a saber:

I – mínima ofensividade da conduta do agente;

II – nenhuma periculosidade social da ação;

III – reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; e

IV – inexpressividade da lesão jurídica provocada.

Alguns entendem – a nosso juízo, equivocadamente – que o postulado bagatelar somente poderia ser reconhecido quando presentes os quatro vetores, que, desta forma, seriam cumulativos.

Apesar da força que goza essa corrente, fazemos coro com Luiz Flávio Gomes (2013), que defende a desnecessidade da presença imperiosa de todos os vetores no caso concreto, bastando que um deles, ou alguns deles, esteja (m) presente (s).

Ora: o entendimento de Luiz Flávio Gomes (2013) revela-se mais razoável, afinal, o Direito não é uma equação matemática exata. O que há de essencial, na análise do princípio da insignificância, é a existência ou não de grave lesão ao bem jurídico tutelado.

Esse deve ser o critério principal para aferição do cabimento ou não do preceito bagatelar, mesmo que falte um dos vetores sustentados pela Corte Suprema.

Aliás: a presença de todos os vetores é algo temerário, porquanto depende da interpretação conferida por cada julgador! Portanto, desarrazoada a exigência de que as premissas orientadoras estejam todas, de forma cumulativa, implementadas no caso concreto.

Não se tratam de requisitos fechados, senão de vetores de orientação, de interpretação, que servem para possibilitar um dimensionamento entre a ação levada a cabo pelo agente e a lesão concreta (ou não) ao bem jurídico tutelado.

Não bastasse isso, há que se denunciar um verdadeiro equívoco interpretativo que se verifica na práxis forense, concernente ao entendimento jurisprudencial que exige a presença de um requisito subjetivo – o mérito do delinquente! – para o reconhecimento do princípio da insignificância, a saber: não ser o sujeito reincidente ou não possuir maus antecedentes.

Nada poderia estar mais errado. E por uma questão bem simples: essa corrente faz verdadeira confusão quanto ao momento de aferição do juízo de tipicidade.

O que importa, na análise da tipicidade material, é se o bem jurídico fora lesionado ou não. A análise da personalidade do agente, da reincidência ou de seus maus antecedentes não integra de modo algum o juízo de tipicidade. Ao contrário: são circunstâncias que devem ser levadas em conta no momento de fixação da pena-base (maus antecedentes e personalidade) ou da pena provisória (agravante da reincidência).

Convenhamos: o bem jurídico não sofre uma maior lesão em virtude do sujeito ser reincidente ou possuir vida pretérita criminosa. A intensidade da lesão é, exatamente, a mesma.

Com efeito, o prejuízo suportado, p. ex., por um supermercado, relativo a um furto praticado, por um sujeito primário e de bons antecedentes, de uma barra de chocolate avaliada em cinco reais, seria idêntico acaso o autor da conduta tivesse sido um sujeito multireincidente. O que muda é o juízo de reprovação, vale dizer, de censura que se faz sobre o agente, e não a potência da afetação do bem jurídico protegido!

Outrossim, este juízo de reprovabilidade não pode ser realizado jamais no momento da aferição da tipicidade material do fato, a qual se ocupa do dano sofrido pelo bem jurídico e não da pessoa do agente.

Sob outro prisma, nunca é demais relembrar que há muito tempo já se critica a vinculação da reincidência e de outros critérios subjetivos ao Direito Penal, notadamente porque ignoram o princípio da secularização ao confundir direito com moral, afrontando ao garantismo forjado por Ferrajoli.

Nessa toada, abalam-se os pilares que estruturam o Estado Democrático de Direito, aproximando-o ao tão rechaçado, porém corriqueiro, Direito Penal do autor, reprovando-se o agente pelo que ele é (ou pelo o que alguns acreditam que ele é!), e não pelo o que ele fez, fundando a punição não na gravidade da conduta, mas sim na potencial periculosidade que o Estado atribui ao agente.

A utilização de critérios subjetivos na aplicação do princípio da insignificância, voltando os olhos do Direito Penal mais para o autor do que para sua conduta, traz consigo a desproporcionalidade de penas de longa duração para condutas de ínfima gravidade, o que já era combatido por Beccaria em 1764.

Não fosse o suficiente, acaba por, mesmo que indiretamente, ressuscitar pensamentos que vigoraram durante a Segunda Grande Guerra e que são ardentemente criticados, pois, mais uma vez, são ignorados os fundamentos da dignidade da pessoa humana.

E o que é pior: se utiliza da circunstância do autor da conduta ser ele mesmo para mensurar o rigor da sua pena ou para determinar a severidade do trato penal, ao invés de se levar em conta a gravidade de seus atos.

Ainda, causa-nos indignação, vergonha e espanto saber que, em nosso ordenamento jurídico, nunca será dado ao autor de um delito ser esquecido e ser deixado em paz, afinal, estará sempre assombrado pela figura jurídica da reincidência, que, apesar de ser concebida como circunstância agravante, é, contra legem, invocada para impedir uma série de benefícios, para justificar restrições indevidas do direito de liberdade ou para impedir a incidência de postulados essenciais (como o da insignificância).

Isso sem falar nos casos em que a reincidência, na consciência do Julgador, enseja uma inversão da presunção de inocência e, ao contrário de o réu ser tratado e presumido como inocente, tal como determinam a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica, ele é tido ab initio como culpado, não porque assim as provas apontam, mas porque, no passado, um dia, ele teria delinquido.

Não bastasse, quando finalmente transcorrido o período depurador da reincidência (art. 64, I, do CP), o sujeito passa a ser assombrado pelos maus antecedentes. E, desse modo, não tem o direito de ficar, nunca, em paz (ainda mais quando se adota o sistema da perpetuidade quanto aos maus antecedentes!).

Moral da história: o equívoco interpretativo da corrente jurisprudencial que exige o implemento do “mérito de delinquente” por parte do agente é manifesto.

Ademais, resta hialino que não cabe em um Estado Democrático de Direito, regido pelos Direitos Humanos, a utilização das condições pessoais do agente para obstar a incidência do princípio da insignificância.

 

REFERÊNCIAS

COPETTI, André. Direito penal e estado democrático de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Insignificância e outras excludentes de tipicidade. – 3. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

Escrito por: Guilherme Espíndola Kuhn e Luiz Fernando Falci da Fonseca
Fonte: Canal Ciências Criminais