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Na historinha de hoje, o admirável Genival, um senhorzinho careca só no meio (daqueles com cabelo só nos lados). Genival tinha um grande sonho: a “casa própria”. Do outro lado, a instituição financeira “Dinheiro Sobrando”. Lucrativa, sólida, forte. Costumava perfumar a sala de financiamentos imobiliários com “cheirinho de lavanda”, para deixar seus clientes mais à vontade. Também na historinha: a incorporadora (art. 29, da Lei 4.591/1964)”Balança mas não cai”. Com larga experiência em empreendimentos imobiliários, volta e meia atrasava algumas construções, mas sempre acabava, no final, “dando tudo certo”.

Quando estas três pessoas se encontraram, o que aconteceu? Surgiu o grande plano para viabilizar o sonho de Genival.

Por meio de uma compra e venda (art. 481, do CC/2002), a incorporadora “Balança Mas Não Cai” obrigou-se a transferir, desde já, a propriedade de um futuro imóvel (um imóvel em construção, um imóvel na planta) para o Genival. Ainda, a incorporadora assumiu o dever de entregar a posse do bem, devidamente construído e regularizado, para Genival, em uma determinada data futura.

Na mesma compra e venda (art. 481, do CC/2002), o Genival, em contrapartida, obrigou-se a pagar o preço do futuro imóvel. Mas, Genival não tinha “dinheiro sobrando”, nem embaixo do colchão. Qual foi a saída? O mútuo (art. 586, do CC/2002), que aqui também pode ser chamado de empréstimo de dinheiro ou financiamento.

Em relação ao mútuo (art. 586, do CC/2002), a instituição financeira “Dinheiro Sobrando” emprestou certa quantia para o Genival, para que o Genival quitasse o preço da compra e venda do futuro imóvel.

Ainda em relação ao mútuo (art. 586, do CC/2002), fixou-se, no contrato, que Genival, teria dois compromissos fundamentais. Primeiro, teria que devolver à instituição financeira o dinheiro emprestado, isto é, as chamadas prestações do financiamento. Segundo, pagar outros valores a título de encargos, que vamos chamar aqui pela expressão “juros de obra” (também chamados de taxa de evolução de obra ou juros no pé), para remunerar a instituição pelo empréstimo concedido (art. 591, do CC/2002).

Também no que tange ao mútuo, ficou estabelecido que a obrigação de Genival, de pagar os encargos e as prestações, seria diferente, dependendo de certos períodos de tempo ou fases.

Quando essa história de fases ou períodos do mútuo foi dita ao Genival, ele não entendeu muito bem. Mas, após a explicação do atendente da instituição financeira, que vestia uma elegante gravata do “Mickey”, tudo ficou mais claro.

O primeiro período do mútuo foi chamado de “fase de construção sem atraso na entrega ou regularização do imóvel”. A data inicial deste período corresponderia à data da assinatura do contrato por Genival. A data final, por sua vez, representaria a data limite em que a incorporadora “Balança Mas Não Cai” deveria entregar e regularizar o imóvel.

Estabeleceu-se que, neste primeiro período, Genival teria que pagar, à instituição “Dinheiro Sobrando”, somente encargos (ou seja, os denominados juros de obra). Neste período, Genival não teria que pagar as prestações do financiamento. Por isso, os pagamentos, nesta fase, não iriam abater a dívida do Genival com a instituição financeira.

O segundo período do mútuo foi definido como “fase de construção com atraso na entrega ou regularização da obra”. A data inicial deste período seria a data limite em que a incorporadora deveria entregar e regularizar o imóvel. Por sua vez, a data final do período seria a data em que a incorporadora, de fato, viesse a entregar e regularizar o imóvel. Neste ponto, o atendente (aquele da gravata do “Mickey”), explicou uma coisa muito importante pro Genival: regularizar o imóvel significava averbar a carta de “habite-se” na matrícula do imóvel, no Registro de Imóveis.

Neste segundo período do mútuo (fase de construção com atraso na entrega ou regularização da obra), fixou-se que, caso este período viesse a ocorrer, Genival não teria o dever de pagar qualquer encargo para a instituição financeira. Neste caso, o dever de pagar os encargos (os denominados juros de obra), durante o atraso, seria da própria incorporadora.

O terceiro período do mútuo foi denominado de “fase de amortização”. Este período teria início a partir do momento em que o imóvel fosse devidamente entregue e regularizado. Por sua vez, teria fim no momento em que as prestações do empréstimo fossem integralmente quitadas.

Nesta fase do mútuo (fase de amortização), Genival teria que pagar, além de encargos, as prestações. Os encargos continuariam a não abater a dívida, ou seja, não iriam diminuir o valor emprestado. Já as prestações, uma vez pagas, iriam abater o valor da dívida emprestada.

Sobre estas fases do mútuo (financiamento, empréstimo de dinheiro), Genival fez um esqueminha em um guardanapo, pra ficar tudo mais fácil de ele entender e se lembrar depois (este é o guardanapo que aparece na foto!).

A instituição financeira “Dinheiro Sobrando”, apesar do nome, não gostava de perder dinheiro. Por isso, ela precisava de uma garantia, caso Genival não viesse a pagar o empréstimo: aí é que entrou a alienação fiduciária (art. 1.361, do CC/2002).

Através da alienação fiduciária, Genival obrigou-se a transferir, desde já, como garantia do empréstimo, a propriedade fiduciária do futuro bem imóvel (aquele mesmo cuja propriedade havia acabado de receber da incorporadora) para a instituição financeira “Dinheiro Sobrando”. Genival, entretanto, ficaria com a posse do bem e poderia usá-lo normalmente, uma vez entregue pela incoporadora (art. 1.361, § 2, do CC/2002). Estabeleceu-se, em linhas gerais, que, quando Genival quitasse integralmente a dívida do empréstimo (isto é, pagasse tudinho), a propriedade fiduciária da instituição financeira se resolveria (extinguiria) e Genival passaria a ter a propriedade plena do bem. Todavia, se Genival não quitasse o empréstimo, a instituição financeira venderia o bem para outra pessoa, para quitar o mútuo e não sofrer qualquer prejuízo (art. 1.364, do CC/2002).

Agora que você já entendeu o grande plano do Genival, vamos imaginar uma primeira situação. Depois de assinado o contrato, Genival prosseguiu pagando os encargos (juros de obra) durante a “fase da construção sem atraso na entrega e regularização do imóvel”.

Ocorre que, certo dia, Genival estava jogando Candy Crush, mas as vidas terminaram! Sem nada melhor pra fazer, Genival acabou lendo na internet que a simples previsão contratual de pagamento de encargos (juros de obra), na “fase da construção sem atraso”, eram abusivos (art. 51, IV, do CDC). Desta forma, estes juros não podiam ser cobrados pela instituição financeira, durante a “fase da construção sem atraso” .

Por causa disso, Genival enviou um email, enfurecido, para o atendente da gravata do “Mickey”, solicitando o reembolso dos encargos já pagos (juros de obra), bem como pedindo para que não fosse mais cobrado estes encargos durante a “fase da construção sem atraso”. Genival agiu certo?

Nops (significa não). O STJ, no EREsp 670.117-PB, julgado em 13/6/2012, precedente que atualmente é seguido pelo referido Tribunal, decidiu que não é abusiva a cláusula de cobrança de juros compensatórios (leia-se: juros de obra) incidentes em período anterior à entrega das chaves. É verdade que este precedente analisou uma promessa de compra e venda, e não uma compra e venda com financiamento e alienação fiduciária (como no caso do Genival). Porém, a lógica jurídica é a mesma em ambos os casos. Desta forma, aplicando-se o entendimento do STJ, pode-se dizer que a cláusula contratual que previu o pagamento de encargos (juros de obra), durante a “fase da construção sem atraso” (isto é, antes do momento em que o bem deveria ser entregue e regularizado), não era nula ou abusiva (art. 51, IV, do CDC), e sim válida. Desta forma, a instituição financeira tinha o direito de cobrar tais encargos (juros de obra). Consequentemente, Genival não tinha o direito de pedir a restituição dos encargos (juros de obra) já pagos na “fase da construção sem atraso”, bem como não tinha o direito de exigir que a instituição financeira não mais lhe cobrasse tais encargos (juros de obra) na “fase da construção sem atraso”.

Avançando, vamos imaginar, agora, uma segunda situação. Num belo dia, finalmente, a incorporadora “Balança Mas Não Cai” entregou o imóvel construído para o Genival, dentro do prazo que havia prometido. Foi um dia de festa. Inclusive, balõezinhos coloridos de gás sobrevoaram o local. Todavia, embora tenha entregue o bem no prazo, a incorporadora não regularizou o imóvel, com a devida averbação do “habite-se”, no prazo prometido. Com isso, iniciou-se a segunda fase que explicamos acima, a “fase da construção com atraso na entrega ou regularização do imóvel”. Durante esta fase, Genival continuou a pagar, para a instituição financeira, os encargos (juros de obra), como se ainda estivesse na primeira fase (fase da construção sem atraso).

Genival desconfiou que havia algo errado. Ele pegou o guardanapo (aquele da foto) e verificou que lá constava que, na “fase de construção com atraso na entrega ou regularização da obra”, ele não deveria efetuar qualquer pagamento para a instituição financeira. Igualmente, Genival verificou que, neste caso, quem deveria efetuar o pagamento dos encargos (juros de obra) seria a incorporadora “Balança Mas Não Cai”.

O que aconteceu? Genival, novamente enfurecido (e cada vez com mais temor de perder os cabelos laterais que ainda lhe restavam), mandou novamente um email para o atendente da gravata (sim, aquela do Mickey!), solicitando a restituição dos encargos (juros de obra) que havia pago na “fase de construção com atraso”, bem como pedindo para que não lhe fosse mais cobrado tais encargos (juros de obra), enquanto persistisse a “fase de construção com atraso”. Genival agiu corretamente?

Sim. Conforme o entendimento que prevalece no âmbito dos tribunais inferiores (por exemplo, a Apelação Cível n. 70075852657, do TJ/RS), a incorporadora “Balança Mas Não Cai” é que devia arcar com os encargos (juros de obra), na “fase de construção com atraso”, exatamente como foi estabelecido no contrato. Afinal, o atraso na regularização do imóvel foi causado pela incorporadora, e não pelo Genival, não é mesmo? Assim, podemos dizer que Genival tinha o direito de obter a restituição dos encargos (juros de obra) que pagou na “fase de construção com atraso”, bem como o direito de exigir que não lhe fosse mais cobrado tais encargos (juros de obra), enquanto persistisse a “fase de construção com atraso”.

Escrito por: Fernando Nonnenmacher
Fonte: Jusbrasil