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Resolvemos escrever sobre a presunção de inocência em virtude da tendência hodierna, tanto da doutrina quanto da jurisprudência, de flexibilizar o referido princípio em razão de supostos ganhos de eficácia no combate a impunidade.

É comum, em qualquer lugar que se vá, que o excesso de garantias e a morosidade do processo penal constituam fatores impeditivos que dificultam o exercício efetivo do direito de punir do Estado.

Argumenta-se ainda que a impossibilidade da execução provisória da pena advém do caráter absoluto que se atribui a presunção de inocência ou não culpabilidade, o que acaba fomentando a impunidade.

Partindo-se dessa premissa, inicialmente, cumpre salientar que o princípio constitucional da presunção de inocência está insculpido no artigo 5º, inciso LVII, da constituição cidadã de 1988, nos seguintes termos: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, como também na convenção americana de direitos humanos (Pacto San josé da Costa Rica), que dispõe o seguinte: “toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”

Nota-se que a presunção de inocência possui previsão não apenas no ordenamento jurídico interno, mas também em documentos internacionais, o que reforça a importância do referido instituto, que é observância obrigatória em todos os países democráticos e que respeitam as garantias do indivíduo como cidadão e sujeito de direito.

Streck (2015), em artigo específico sobre o tema, ao fazer uma análise sob uma perspectiva histórica, diz que a presunção de inocência se solidificou a partir do iluminismo e das revoluções liberais, se sobrepondo, dessa forma, à presunção de culpabilidade, que era a que prevalecia.

Nota-se assim, que a presunção de inocência, no processo penal, nasce no intuito de proteger o indivíduo em relação aos abusos estatais. O indivíduo que era tratado como objeto do processo e objeto de prova, passa a ser encarado sob uma nova ótica. Nessa esteira, o poder punitivo do Estado passou a encontrar limites para que pudesse ser aplicado.

De acordo com Ferrajoli (2002), na baixa Idade Média, o que prevalecia era a presunção de culpabilidade, pois o indivíduo era presumidamente culpado, tendo o ônus de provar sua inocência no curso do processo. No caso de insuficiência de provas, a dúvida equivalia-se a uma semiprova, que comportava um juízo de semiculpabilidade e uma semicondenação a uma pena mais leve.

Nas palavras de Streck (2015), devemos analisar o princípio constitucional da presunção de inocência a partir de três aspectos, quais sejam, como garantia política do cidadão, como regra de julgamento, e como regra de tratamento.

Assim, como garantia política de todo cidadão, o estado de inocência só pode ser afastado diante de prova plena do ilícito, e desde que respeitado o devido processo legal.

Já como regra de julgamento, o estado de inocência, impõe que o réu só pode ser condenado caso não reste dúvidas acerca de fato criminoso; deve haver certeza em relação a materialidade e a autoria do fato delituoso.

Por fim, como regra de tratamento, o estado de inocência impõe que o réu deve ser tratado como inocente durante todo o processo, só podendo ser tratado como culpado, após o advento da sentença penal condenatória irrecorrível.

Nota-se que a presunção de inocência é mais que um princípio processual, já que deve ser encarada a partir de várias óticas, não podendo ser afastada antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, devendo o réu ser absolvido em caso de dúvida em virtude do in dúbio pro reo, que nada mais é que uma consequência lógica do princípio da presunção de inocência.

Ademais, conforme já dito, o acusado/réu deve ser tratado como se inocente fosse em qualquer fase da persecução penal. Assim, tanto na fase de investigação, quanto na fase processual propriamente dita, o postulado da presunção de inocência deve ser observado, não podendo, portanto, o interrogatório do acusado ser utilizado como ferramenta para buscar a verdade a qualquer custa, uma vez que, o acusado tem direito de permanecer em silêncio em qualquer interrogatório, em razão do princípio da não auto incriminação, que, por sua vez, é decorrência lógica da presunção de inocência.

Lopes Jr (2013), por sua vez, diz que a presunção de inocência impõe um dever de tratamento, exigindo que o réu seja tratado como inocente tanto dentro do processo como fora dele. Ou seja, exige-se um dever de tratamento interno e externo ao processo.

Na dimensão interna, a presunção de inocência determina que a carga da prova fique nas mãos do acusador, pois é ele que tem o ônus de provar que o fato alegado é típico, ilícito e culpável, tendo, portanto, o dever de desconstruir o estado de inocência do acusado.

Em outras palavras, o ônus da prova pertence, única e exclusivamente, a acusação, pois é ela quem tem que provar a ocorrência do fato criminoso, através da comprovação de todos os elementos do tipo penal, incluindo assim, a comprovação da ausência de justificantes e exculpantes penais.

Ainda na dimensão interna, a presunção de inocência nos mostra que a dúvida deve conduzir inexoravelmente à absolvição, e que as prisões cautelares devem ser utilizadas de forma cuidadosa, evitando-se, dessa forma, abusos.

Já dimensão externa ao processo, a presunção de inocência deve ser utilizada para combater a publicidade abusiva e a estigmatização precoce do réu. Assim a presunção de inocência serve, portanto, para limitar a exploração midiática em torno do fato criminoso, evitando a espetacularização do processo, no intuito de preservar a dignidade e a imagem do acusado.

Esse princípio fundamental de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado[…]. (FERRAJOLI, 2002, p. 441).

Conclui-se, dessa forma, que a observância da presunção de inocência, em todos os seus aspectos, é de fundamental importância para a preservação das garantias do acusado, bem como para a preservação do devido processo legal.

Por fim, corroboramos com o pensamento de que a presunção de inocência é mais do que um simples princípio processual. Vai bem mais além que isso. O estado de inocência ou não culpabilidade é princípio reitor de todo o processo penal. Sendo assim, é inadmissível que haja qualquer mitigação em relação ao referido princípio.

Escrito por: Daniel Lima
Fonte: Canal Ciências Criminais

Referências:

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: Teoria do garantismo penal. 3º ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2002.
LOPES JR, Aury. Prisões Cautelares. 4 ed. São Paulo: Saraiva. 2013.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva. 2016.
STRECK, Lênio Luiz.A presunção da inocência e a impossibilidade de inversão do ônus da prova em matéria criminal: os Tribunais Estaduais contra o STF. 3º ed. Curitiba: Revista Jurídica do MP-PR. 2015.