João gosta muito de cassinos a fim de participar de torneios de poker e foi passar o fim de semana em Las Vegas (EUA), como faz frequentemente.
Por ser cliente assíduo do hotel, João possui um privilégio por meio do qual adquire as fichas para o cassino com a obrigação de pagar depois. Isso é chamado de “marker”, créditos concedidos ao jogador, que recebe a antecipação dos valores em forma de fichas e assina uma espécie de promissória.
João pegou o equivalente a 500 mil dólares em fichas, assinando as respectivas promissórias.
Depois de dois dias jogando, o brasileiro perdeu tudo.
Ele voltou para o Brasil sem pagar pelas fichas que adquiriu.
O cassino ingressou, então, com ação de cobrança na vara cível de São Paulo, local onde mora o réu, pedindo o pagamento de quase R$ 2 milhões, valor atualizado do débito.
João contestou a ação alegando que o pedido é juridicamente impossível considerando que o ordenamento brasileiro proíbe a cobrança de dívidas de jogo.
O argumento do réu foi acolhido pelo STJ? A ação deve ser julgada extinta sem resolução do mérito pela impossibilidade jurídica do pedido?
NÃO. A cobrança de dívida de jogo contraída por brasileiro em cassino que funciona legalmente no exterior é juridicamente possível e não ofende a ordem pública, os bons costumes e a soberania nacional.
STJ. 3ª Turma. REsp 1.628.974-SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, julgado em 13/6/2017 (Info 610).
O jogo explorado por cassinos é proibido pela legislação brasileira, sendo, no entanto, lícito em diversos estados americanos, como é o caso de Nevada, onde se situa Las Vegas.
A questão a ser debatida, então, diz respeito à possibilidade de cobrança judicial de dívida de jogo contraída por um brasileiro em um cassino que funciona legalmente no exterior. O STJ entendeu que é possível. Vamos entender com calma.
Dívidas de jogo contraídas no Brasil são inexigíveis
O art. 814 do Código Civil preconiza:
Art. 814. As dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito.
Em caso de obrigação constituída no exterior aplica-se o art. 9º da LINDB
Ocorre que a obrigação foi constituída nos EUA. Dessa forma, deve-se aplicar a legislação estadunidense, conforme prevê o art. 9º, caput, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB):
Art. 9º Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem.
Assim, a lei material aplicável ao caso é a norte-americana, mais especificamente a do Estado de Nevada.
Para obrigação constituída no exterior poder ser exigida em nosso país, deve-se respeitar a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes
Vale ressaltar que a lei estrangeira somente pode produzir eficácia jurídica no Brasil se não ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. Em outras palavras, mesmo tendo a obrigação se constituído no exterior, esta obrigação somente será exigível em nosso país se não violar estes valores. Isso é o que estabelece o art. 17 da LINDB:
Art. 17. As leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes.
Dessa feita, a possibilidade (ou não) de cobrança de dívida de jogo contraída no exterior está diretamente relacionada com os valores mencionados no referido art. 17.
A pergunta que surge, então, é a seguinte: cobrar dívida de jogo contraída no exterior viola a soberania nacional, ordem pública e bons costumes?
NÃO. Vejamos.
Soberania nacional
A cobrança de dívida de jogo ocorrida no exterior não ofende a soberania nacional. Ora, a concessão de validade a negócio jurídico realizado no estrangeiro não retira o poder do Brasil em relação ao seu território nem cria nenhuma forma de dependência ou subordinação a outros Estados soberanos.
Ordem pública
A ordem pública é conceito mutável, relacionado com a moral e com a ordem jurídica vigente em dado momento histórico. Não se trata de uma noção rígida, mas de um critério que deve ser revisto conforme a evolução da sociedade.
Existem atualmente no Brasil diversos jogos de azar legalizados, os quais em nada se diferenciam dos jogos estimulados nos cassinos.
Não há, portanto, uma absoluta incompatibilidade entre a lei do Estado de Nevada, que autoriza os cassinos supervisionados pelo Estado, com a ordem jurídica vigente no Brasil.
Vale ressaltar que o Brasil pune como contravenção penal a exploração de jogos não legalizados (art. 50). Ocorre que os cassinos no Estado de Nevada são jogos legalizados, de forma que não se enquadram na Lei de Contravencoes Penais.
Bons costumes
O meio social e o ordenamento jurídico brasileiros não consideram atentatórios aos bons costumes os jogos de azar. Isso se mostra pelo fato de que diversos deles são autorizados no Brasil, como loterias, raspadinhas, sorteios e corridas de cavalo.
Além disso, o próprio art. 814 do CC, em sua parte final, afirma que não se pode recobrar a quantia que voluntariamente se pagou a título de dívida de jogo ou aposta. Ora, se fosse contrário aos bons costumes, não haveria essa regra de irrepetibilidade.
Dessa forma, cobrar dívida de jogo contraída no exterior não viola a soberania nacional, ordem pública e bons costumes.
Enriquecimento sem causa
Além disso, permitir a cobrança, no Brasil, de dívida de jogo contraída no exterior é uma medida que está de acordo com o art. 884 do Código Civil, que proíbe expressamente o enriquecimento sem causa.
Aquele que visita país estrangeiro, usufrui de sua hospitalidade e contrai livremente obrigações lícitas não pode retornar a seu país de origem buscando a impunidade civil.
Se não fosse permitido que o cassino cobrasse a dívida aqui no Brasil, haveria lesão à boa-fé de terceiro, bem como o enriquecimento sem causa do devedor.
Conclui-se, portanto, que o pedido é juridicamente possível e não ofende a ordem pública, os bons costumes e a soberania brasileira. Ademais, deve ser aplicada, no que respeita ao direito material, a lei americana.
Fonte: dizer o direito.