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Vou contar pra vocês a historinha do Godofredo e da Incorporadora “Vapt Vupt”. Também vou explicar como o probleminha entre eles foi resolvido, com base nas orientações do STJ, no REsp 1.582.318-RJ, julgado em 12/9/2017 e noticiado no Informativo 612. Vamos lá, desde o início, pra ficar tudo bem explicadinho.

Godofredo e a Incorporadora “Vapt Vupt” realizaram uma promessa de compra e venda. Godofredinho assumiu o dever de entregar, para a Incorporadora, certa quantia em dinheiro, em prestações mensais. A Incorporadora, por sua banda, tomou para si a responsabilidade de entregar a posse de uma unidade, devidamente construída e regularizada, em uma certa data futura, para o Godofredo. Ademais, uma vez pago todo o preço, a Incorporadora teria o dever de celebrar a compra e venda (também chamado de dever de outorgar a escritura), em que teria a obrigação de transferir a propriedade do imóvel para o Godofredo. Em linhas gerais, foi isso o que as partes contrataram.

Vamos nos concentrar, agora, em apenas uma destas obrigações previstas no contrato: o dever assumido, pela Incorporadora, de entregar, em uma determinada data, o imóvel, devidamente construído e regularizado, para o Godofredo. Ou seja, a chamada obrigação de “entrega das chaves” em uma data certa. Esta data, em princípio, deveria ser fielmente observada pela Incorporadora “Vapt Vupt”. Assim, a Incorporadora não poderia simplesmente prorrogar esse prazo, sem que houvesse um motivo para tanto.

Porém, no contrato, além da cláusula referida no parágrafo anterior, descreveu-se uma série de situações, que poderiam ocorrer no decorrer da execução da obra. Seriam fatos imprevisíveis (ou fatores de imprevisibilidade) que poderiam afetar negativamente a construção, como intempéries, chuvas, escassez de insumos, greves, falta de mão de obra, crise no setor, entre outros contratempos. Ficou estabelecido, no contrato, que, verificado qualquer um destes fatos, a Incorporadora poderia prorrogar a data da entrega do imóvel (construído e regularizado) em até 180 dias após a data prevista inicialmente para a entrega. Em outras palavras, ocorrendo um ou mais destes fatos imprevisíveis, o Godofredo deveria tolerar, sem qualquer direito de indenização, um atraso de até 180 dias para receber o imóvel construído. Como se chamou isso? Se denominou isso de “cláusula de tolerância”.

O Godofredo, depois de assinar o contrato, não tinha nada para fazer. Então, ele resolveu ler o que tinha assinado. Resultado: ficou indignado com esta “cláusula de tolerância”. Telefonou para a Incorporadora “Vapt Vupt” e pediu para falar urgentemente com o Atendente da Meia Curta (que era quem estava, em nome da Incorporadora, tratando com o Godofredo, sobre a promessa de compra e venda). Observação: o Atendente da Meia Curta era conhecido por esse nome, porque os cabelos de sua perna sempre ficavam à mostra quando ele se sentava. Mas, isso não é importante. Vamos prosseguir, para saber o que o Godofredo falou.

Godofredo, com o caderninho embaixo do braço (refiro-me ao Código de Defesa e Proteção do Consumidor) explicou para o Atendente (da Meia Curta) que a relação entre ele (o Godofredo) e a Incorporadora era uma relação de consumo, sendo, portanto, aplicável as normas de defesa e proteção do consumidor, nos termos do art. 2 e 3, do CDC, de 1990. Neste contexto, a cláusula de tolerância, que estabeleceu o direito da Incorporadora prorrogar a entrega do imóvel, por até 180 dias, diante de fatos imprevisíveis, era uma cláusula que somente trazia vantagens para a Incorporadora. Não havia qualquer outra cláusula no contrato, que estabelecesse um direito semelhante para ele (o Godofredo), como consumidor (tal como atrasar em até 180 dias os pagamentos, diante de fatos imprevisíveis), ou mesmo qualquer outra vantagem para ele. Assim, Godofredo argumentou que o negócio, neste ponto, possuía um desequilíbrio e que, por tal razão, a cláusula de tolerância era abusiva (ilegal), nos termos do art. 51, IV, do CDC, de 1990.

Godofredinho estava com a razão, ao sustentar que a claúsula de tolerância era abusiva? Segundo o STJ (REsp 1.582.318-RJ, julgado em 12/9/2017 e noticiado no Informativo 612), a resposta é negativa.

É verdade que o STJ daria razão ao Godofredo, no ponto em que este sustentou que a relação travada com a Incorporadora era de consumo, sendo, por isso, aplicável as normas de defesa e proteção do consumidor. Porém, o STJ não daria razão a ele, quando afirmou que a cláusula de tolerância era abusiva.

Na linha do STJ, pode-se dizer que a incorporação imobiliária da nossa historinha, assim como qualquer outra incorporação, seria uma atividade extremamente complexa a ser desenvolvida. Não seria possível, à Incorporadora “Vapt Vupt), em razão das intempéries a que estão sujeitas as contruções, assegurar, ao Godofredo, que o imóvel seria entregue exatamente na data prevista.

Caso não houvesse a cláusula de tolerância (assegurando à Incorporadora a possibilidade de atrasar a entrega da obra), a atividade de incorporação, neste ponto, envolveria um grande risco. Qual seria? O risco de não conseguir entregar o imóvel na data combinada, por fatos que fugiriam ao domínio da Incorporadora. E, ocorrendo esse risco (ou seja, o não cumprimento da obrigação de entregar o bem na data estipulada no contrato, por fatos alheios à vontade da Incorporadora), a Incorporadora praticaria uma ilegalidade e causaria danos ao consumidor, que deveriam ser indenizados em dinheiro. Então, se não houvesse a cláusula de tolerância, a Incorporadora teria que calcular e arcar com o custo deste risco (como se fosse o custo de um seguro contra a possibilidade de ocorrência destas intempéries). Mas, como, no contrato celebrado entre o Godofredo e a” Vapt Vupt “, havia a” cláusula de tolerância “, a Incorporadora não precisava arcar com o custo do risco de não entregar o bem, na data exata estimada. Após a data prevista, a”Vapt Vupt”ainda teria uma gordurinha para queimar, como dizem por aí. Assim, claramente, a cláusula de tolerância, nos moldes aqui tratada, representou uma grande vantagem à Incorporadora” Vapt Vupt “.

Porém, não é só isso que esta cláusula de tolerância representou. Na verdade, por um outro lado (isto é, se analisarmos a cláusula pelo viés do consumidor), é preciso verificar que, se não houvesse a cláusula de tolerância, o custo do risco (de, no futuro, por não entregar o imóvel no prazo, ter que indenizar os promitentes compradores em dinheiro) seria repassado, pela Incorporadora, ao Godofredo. Assim, se não houvesse a cláusula de tolerância, o preço, estabelecido na promessa de compra e venda, seria maior. Em outras palavras, o Godofredo teria que pagar um valor mais elevado pelo imóvel. Porém, como houve a referida cláusula, o custo do risco não existiu e, por essa razão, não foi repassado ao Godofredo, no preço do imóvel por ele prometido comprar. Sob este enfoque, pode-se entender, portanto, que a cláusula de tolerância trouxe também uma vantagem para o Godofredo.

Portanto, no esteio do entendimento do STJ, a cláusula que estabeleceu que, diante de certos fatos imprevisíveis, a Incorporadora poderia atrasar, até 180 dias, a entrega do imóvel, acarretou, em última análise, vantagens para ambas as partes, razão pela qual não gerou uma vantagem exagerada para a Incorporadora e não comprometeu o equilíbrio da relação contratual. Assim, a cláusula não era abusiva (ou ilegal), a contrário senso do estabelecido no art. 51, IV, do CDC, de 1990.

Vimos então que, com base no entendimento do STJ, Godofredo não teria razão, em sua reclamação. Mas, a reclamação acima não foi a única feita por ele. Aliás, se o Godofredo tivesse mais tempo (e não fosse tão viciado em joguinhos de celular), ele provavelmente teria ficado horas no telefone com o Atendente da Meia Curta.

Qual foi a segunda reclamação do Godofredinho? Ele disse:”Se esta cláusula de tolerância não for retirada do contrato, ao menos deveríamos diminuir o prazo nela prevista. Ter que esperar tanto tempo assim (180 dias), além da data indicada no contrato, para receber o meu imóvel pronto, não pode ser considerado legal!”.

E agora? Godofredo tinha a razão? Lamento informar aos adoradores de Godofredos: nesta reclamação, segundo o STJ, Godofredo também não tinha razão (REsp 1.582.318-RJ, julgado em 12/9/2017 e noticiado no Informativo 612). Explico.

Segundo o STJ, o art. 48, § 2º, da Lei 4.591, de 1964 (Lei das Incorporações Imobiliárias), previu a possibilidade de que fosse colocado no contrato o direito de a incorporadora atrasar a entrega do imóvel (ou prorrogar a data de entrega), em caso de fatores imprevisíveis. A lei não estabeleceu, entretanto, ao menos expressamente, qual seria o prazo máximo de prorrogação permitido. Isso não significa, entretanto, que qualquer prazo poderia ser previsto no contrato. Também não significa que, havendo um processo judicial a respeito, o juiz poderia definir, com base no que comeu no café da manhã, qual seria o prazo adequado. Tudo tem limites, como dizem por aí.

Na verdade, as pessoas envolvidas no mercado imobiliário passaram a acreditar que o prazo máximo de 180 dias seria razoável para que a Incorporadora pudesse, diante das intempéries, entregar as unidades construídas. Além da crença, as pessoas passaram a observar este prazo, como o correto. O que temos, diante desse elemento subjetivo (a crença) e desse elemento objetivo (a observância)? Um costume.

Além disso (ou seja, de se considerar o prazo máximo de 180 dias um costume), existem outros prazos previstos em lei que, conforme o STJ, indicam que, por analogia, o prazo máximo, para a situação, deve ser mesmo de 18o dias. Mas, o que é analogia? Sem aprofundar o tema e fazendo uma rápida consulta aqui neste link do Jusbrasil, podemos dizer que a analogia, no Direito, consiste em um método utilizado quando, diante da ausência de previsão específica em lei, se aplica uma disposição legal que regula casos idênticos, semelhantes, ao da controvérsia. Então, foi isso o que fez o STJ. O Tribunal disse que, na ausência de previsão específica sobre o prazo máximo da cláusula de tolerância, deveria se aplicar, em razão da identidade de situações, o prazo (de 180 dias) de validade do registro da incorporação e o prazo (de 180 dias) da carência para desistir do empreendimento (arts. 33 e 34, § 2º, da Lei nº 4.591/1964 e 12 da Lei nº 4.864/1965), bem como o prazo máximo (de 180 dias) para que o fornecedor sane vício do produto (art. 18, § 2º, do CDC).

Portanto, considerando que o prazo de prorrogação somente pode ser pactuado por até 180 dias (por força de um costume e por força de uma analogia), a cláusula do contrato do Godofredinho, que estabeleceu justamente um prazo de 180 dias, não era ilegal.

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Postado por: Fernando Nonnenmacher
Fonte: Jusbrasil