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Prevê a Constituição Federal, em seu artigo 5º, incisos LV e LXIII, respectivamente, que, “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, e que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado.”

Não obstante a determinação constitucional, os Tribunais pátrios, de há um bom tempo, vem decidindo no sentido de que a ausência de acompanhamento de defensor durante a lavratura do auto de prisão em flagrante não enseja nulidade do procedimento.

Normalmente, percebe-se as seguintes razões de decidir (isoladamente ou cumulativamente): 1) que o suspeito não indicou advogado; 2) que não se vislumbra a ocorrência de prejuízo, afinal, ele permaneceu em silêncio, de modo que a presença do defensor seria despicienda; 3) que a presença do advogado seria desnecessária, por se tratar de peça meramente informativa.

É preciso, todavia, compreender-se a importância do auto de prisão em flagrante. Comumente, na sua lavratura, ouve-se a (s) vítima (s), eventuais testemunhas/informantes e o investigado (que, sem orientação jurídica, pode ser submetido aos mais temerários métodos de interrogatório, como aqueles que induzem as respostas, por exemplo), acompanhado ou não de seu advogado.

E, em seguida, ou a prisão em flagrante é relaxada pelo juízo, diante de alguma ilegalidade, ou é convertida em prisão cautelar. A possibilidade do investigado responder à investigação (porque, nesse momento, sequer processo existe) em liberdade vem se tornando algo cada vez mais raro na experiência brasileira.

Pois bem. Então, de um lado, temos a Constituição Federal, prevendo que se deveria assegurar (1) o direito ao contraditório e a ampla defesa aos acusados em geral (o que abrange os investigados), mesmo em procedimentos administrativos e/ou informativos (o que abrange o Inquérito Policial ou o Termo Circunstanciado), assim como a presença de um defensor técnico e capacitado; (2) que o suspeito deve[ria] ser presumido e tratado como inocente para todos os fins (art. 5º, LVII); e, por fim, (3) que o direito ao silêncio não pode[ria] ser interpretado em seu desfavor – eis o mundo do dever ser!

De outro lado, temos a realidade brasileira: (1) diversos expedientes de prisão em flagrante são lavrados sem acompanhamento de advogado e, mesmo o suspeito ficando em silêncio, não raras vezes, é decretada a segregação cautelar dele.

Ou seja, é preciso dizer o óbvio: se o investigado ficou em silêncio e houve a determinação de restrição de seu status libertatis (normalmente para fins de garantia da ordem pública), no mínimo se está operando uma presunção de culpa, em afronta à presunção de inocência, bem como uma ponderação do silêncio do suspeito em seu prejuízo.

Logo, aquela velha “razão de decidir” de que a ausência de defensor na lavratura do auto de prisão em flagrante não configura nulidade quando o suspeito fica em silêncio, por não configurar prejuízo, não passa de uma falácia, de um argumento para distorcer a inobservância da Carta Política de 1988: se a prisão “cautelar” do investigado fora decretada, e ele permaneceu em silêncio, ou simplesmente não foi acompanhado por um advogado, o prejuízo é manifesto, é evidente, é inquestionável, uma vez que todo o contexto denota que a ele não fora assegurado o direito ao contraditório e a ampla defesa (já que isso pressupõe capacitação técnica), que o silêncio possivelmente foi interpretado em seu desfavor (aliás, não são raras as decisões que apontam que, como o suspeito permaneceu em silêncio, “inexistem motivos para não prendê-lo!”) e que a presunção de inocência está sendo ignorada, maculada, transmutada em (inconstitucional) presunção da responsabilidade penal do sujeito.

O processo nem iniciou e a Constituição Federal já fora aviltada. Já se tem a formatação do jogo: a guerra de um contra todos… cujas regras são as seguintes: o que está positivado em lei pode ser livremente desrespeitado, salvante se o investigado/acusado demonstrar que sofreu prejuízo, aí a lei deve valer; do contrário, pode ser livremente ignorada.

Ora, é preciso ter em mente que a exigência da presença de defensor técnico na lavratura de autos de prisão em flagrante é prevista constitucionalmente, na Lei Maior. Trata-se de determinação da maior exigibilidade, que só tem a beneficiar e a proteger todos.

Repito: o óbvio – sempre – precisa ser dito! Acreditem: quando a Constituição Federal dispõe que é assegurada a presença e a assistência de um advogado ao flagrado, ela quer dizer que assegura isso mesmo! Portanto, não merece acolhida o argumento comumente invocado de que a expressão “assegurar” não significaria “assegurar”…!

Esse termo somente pode conduzir à conclusão de que a presença de um profissional habilitado e capacitado deve ser garantida. É obrigatória! Segundo o léxico, “assegurar” significa garantir, asseverar, prometer, certificar”, etc!

Todo mundo sabe que a Constituição não tem valido nada. Todavia, esta não pode continuar sendo a realidade brasileira. Nós, advogados, devemos resistir. É um imperativo decorrente de nosso mister, de nosso ofício e do nosso juramento! Somos a resistência!

Outrossim, sejamos razoáveis: no mínimo, se alguém pretende desrespeitar as regras procedimentais (autoridade policial, Ministério Público ou o próprio Juízo, v.g), o responsável pelo descumprimento é que deveria comprovar, demonstrar, evidenciar, enfim, provar de maneira inequívoca que o descumprimento do comando legal por ele almejado não causaria prejuízo ao investigado ou ao réu.

Dito de outra maneira: é de uma incongruência imperdoável atribuir ao sujeito que deveria ter seus direitos fundamentais – que foram desrespeitados – efetivados, o ônus de provar que sofreu prejuízo, o ônus de fazer provas sobre aquilo que não deu causa, o ônus de provar fazer direito a seus direitos, diga-se de passagem, tutelados a título de cláusula pétrea, isto é, que não poderiam ser mitigados, diminuídos, restringidos nem pelo poder constituinte derivado, todavia, o podem por entendimento da autoridade policial ou jurisprudencial…!

Diante do quadro desenfreado de decretação de prisões cautelares – uma patologia jurídica brasileira! -, resta cristalino que o direito ao silêncio pode custar caro (basta examinar os autos)… Não deveria, mas tem custado.

Portanto, para encerrar, já que o espaço é limitado: deve-se assegurar sim a assistência de advogado na lavratura de autos de prisão em flagrante. E a sua ausência configura nulidade do procedimento, mormente se houver posterior prisão preventiva do suspeito. Aí o prejuízo é inquestionável, manifesto, evidente, enfim, de clareza solar.

Além disso, se alguém deve demonstrar alguma coisa, não é o investigado que deve comprovar o prejuízo sofrido. Ele está no exercício de seus direitos fundamentais, cuja aplicabilidade é imediata (art. 5º, § 1º, da CF)! Consectariamente, já passou do momento de superarmos esta cultura jurisprudencial (arbitrária) que vem exigindo a demonstração de prejuízo para que se respeite a lei, que equivale a uma exigência (ilegal) do indivíduo demonstrar ter direito aos seus direitos…

O Advogado é imprescindível sim, seja na fase judicial, seja na fase policial. Eu diria: principalmente na fase de investigação preliminar. É onde mais se precisa de orientação jurídica e do exercício de defesa! Quem conhece de processo penal sabe: a prova que mais condena é a prova inquisitória, é a prova produzida na fase policial e que condiciona/orienta a produção judicial das provas. É ela que dita, normalmente, o rumo e o desfecho processual.

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Escrito por: Guilherme Espíndola Kuhn
Fonte: Ciências Criminais