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Fonte: Pixabay

O Joselito nasceu com vida. Familiares e amigos correram para o Facebook comentar a foto do bebê que havia nascido. Foi mais ou menos assim: “Nooooossa, que menino mais lindo e fofo!”. Outros, adeptos da tese de que todo bebê nasce feio, preferiram algo mais sucinto: “Parabéns!”.

Porém, este fato (o nascimento do Joselito) gerou outra consequência, além de comentários no Facebook. Refiro-me a uma consequência jurídica. Quando o Joselito nasceu, é como se o Direito tivesse dado um presente para ele. Que presente foi esse? A personalidade. Joselito, ao nascer com vida, passou a ter personalidade jurídica, na forma do art. 2, do Código Civil, de 2002.

Consectariamente, pelo simples nascimento com vida, Joselito passou também a titularizar uma série de direitos, próprios dessa personalidade, que são chamados de “direitos da personalidade”. Dentro desse conjunto chamado “direitos da personalidade”, eu quero falar com você sobre um em especial, que o Joselito passou a titularizar, após o seu nascimento com vida: o “direito à imagem”, previsto no art. 20, do Código Civil, de 2002, e também no art. 5, V, X e XXVIII, a, da Constituição do Brasil, de 1988.

O que significou, para o Joselito, ter direito à imagem? Eu tentei usar o Google Tradutor, para traduzir “direito à imagem”, do Juridiquês pro Português, mas não consegui (Quem sabe um dia! Não duvide disso!). Então eu fui na Constituição e também no Código Civil, mas nenhum desses caderninhos queridos me explicou o que é direito à imagem. Alguns diriam pra mim: “Claro, Fernando, não cabe à legislação conceituar nada, porque isso é tarefa da doutrina e da jurisprudência”. Eu não concordo com esses dizeres, mas, como esse não é o momento de choramingar contra frases consagradas no Direito, eu fui pesquisar na doutrina e na jurisprudência.

Pois bem, eu descobri, com base em diversos precedentes do STJ e do STF, que o Joselito, ao adquirir o direito à imagem, passou a ter o direito de, em síntese, não ter a sua configuração externa reproduzida por outra pessoa. Nessa configuração externa entraria tudo aquilo que distinguisse ou identificasse o Joselito das demais pessoas no meio social. Por exemplo: o conjunto composto por voz, olhos, boca, nariz e até mesmo a bunda (Ué, por que não? Principalmente no Brasil, há muitas pessoas que são identificadas pela bunda).

Porém, conforme o STJ e o STF, também em diversos precedentes, esse direito de imagem do Joselito não passou a existir de modo absoluto. Na verdade, esse direito, a depender das situações, passou a sofrer limitações em razão de outros direitos de outras pessoas.

Por outro lado, além do nascimento do Joselito, “nasceu” uma empresa. Restou constituída a Rede de Televisão NMC (significa “Não Mude de Canal”). Tão logo constituída e em regular atividade, a empresa passou a ter o direito de veicular propagandas comerciais, como decorrência do direito de liberdade de comunicação, previsto no art. 5, IX, da Constituição do Brasil, de 1988, do direito de não censura, consagrado no art 220, da Constituição do Brasil, de 1988, e também do direito de liberdade de iniciativa, previsto no art. 170, da Constituição do Brasil, de 1988.

Todavia, assim como o direito de imagem do Joselito, o direito de veicular propagandas comerciais, por parte da NMC, não era absoluto. Na verdade, tal como o direito de imagem, esse direito de veicular propagandas somente passou a poder ser exercido se observadas limitações, decorrentes da necessidade de se resguardar outros direitos de outras pessoas (como o direito de imagem do Joselito).

Agora já sabemos que o Joselito adquiriu o direito de imagem, bem como já sabemos que a NMC adquiriu o direito de veicular propagandas comerciais. Também já sabemos que estes direitos passaram a poder ser exercidos não de forma absoluta, mas sim em consonância com outros direitos, considerando uma determinada situação específica.

Então, vamos continuar a nossa historinha. Passado algum tempo, o Joselito tomou bastante achocolatado e cresceu forte e sadio. A NMC, por sua vez, também passado algum tempo, se consolidou no mercado, fazendo muitas propagandas de lojas de eletrodomésticos no horário nobre, principalmente durante a “Black Friday”.

Certo dia, entretanto, aconteceu a nossa situação específica. A Rede de Televisão NMC utilizou, sem autorização prévia do Joselito, a imagem dele em uma propaganda comercial; ou seja, o Joselito apareceu na telinha, em uma propaganda. Inclusive, ao se ver na televisão, o Joselito conseguiu comprovar aquela famosa tese, de que, na tela da televisão, as pessoas engordam. Tirando esse útlimo detalhe, que é completamente irrelevante, é importante que você note aqui o seguinte: a imagem foi utilizada, pela NMC, sem autorização prévia do Joselito. Ainda, é importante pontuar: a imagem foi utilizada para uma propaganda comercial.

Diante disso, o que ocorreu, no maravilhoso mundo do direito? O que ocorreu foi que a empresa, ao realizar a divulgação da imagem do Joselito, em uma propaganda comercial, sem autorização prévia deste, abusou do seu direito de veicular propagandas comerciais e, consequentemente, violou o direito de imagem do Joselito.

Em um âmbito bem abstrato, essa solução não seria compreenssível. Isso, porque poderíamos, de um lado, considerar que a NMC violou o direito de imagem do Joselito; de outro, poderíamos considerar que a NMC tão só exerceu o seu direito de veicular propagandas comerciais, pelo que não seria possível imputar a ela a violação do direito de imagem do Joselito. Veja, portanto, que haveria, em abstrato, um conflito, um “choque” de direitos abstratamente considerados. Vale dizer, do ponto de vista abstrato, não conseguiríamos responder se a NMC violou ou não o direito do Joselito.

Foi preciso resolver o problema de forma mais concreta. Precisou-se achar uma regra para definir os limites, na situação concreta, destes dois direitos abstratamente previstos, a fim de saber se a NMC violou ou não o direito do Joselito.

E como se elaborou essa regra concreta? Pela técnica da ponderação de direitos, que se tornou famosa, no Brasil, através dos estudos de Robert Alexy. Vou abrir uma nota de rodapé, mas no meio do texto. Sobre esta denominada ponderação de direitos, é preciso registrar que alguns criticam fortemente isso, por legitimar um franco ativismo judicial e também por ser a ponderação realizada de forma equivocada. Eu até acho muito coerente essa crítica. Porém, na falta de algo melhor e inteligível pra resolver esse tipo de problema, a legislação brasileira consagrou a referida ténica no art. 489, § 2, do CPC, de 2015 e os tribunais vêm utilizando ela de forma bem abrangente. Nota de rodapé fechada.

Na situação específica, realizando-se esta ponderação de direitos, foi possível dizer que a empresa, ao realizar a divulgação da imagem do Joselito, em uma propaganda comercial, sem autorização prévia deste, abusou do seu direito de veicular propagandas comerciais e, consequentemente, violou o direito de imagem do Joselito. Ou seja, o limite foi imposto ao direito da NMC de veicular propagandas comerciais, de modo que, na situação, frente ao limite imposto, ela abusou do seu direito. Já, no que tange ao Joselito, nenhum limite foi imposto ao seu direito, de sorte que, na situação elencada, ele teve seu direito violado.

O resultado dessa ponderação foi cristalizada na Súmula 403, do STJ. A súmula indica que a publicação com fins econômicos ou comerciais (para publicidade) da imagem de uma pessoa depende de autorização, sob pena de violar o direito à imagem, in re ipsa (ou seja, independentemente da demonstração de algum outro prejuízo). Sobre a expressão “publicação com fins econômicos ou comerciais”, o STJ, em diversos precedentes, afirmou que se trata de propagandas comerciais, restringindo o alcance da súmula.

Além disso, essa ponderação também foi prevista no art. 20, do CC. Se você ler bem este artigo (e reler com calma várias vezes), você vai ver que a veiculação de imagem, sem autorização, para fins comerciais (para propaganda), constitui um ilícito, por violar o direito de imagem.

Ok, agora já sabemos e entendemos que a NMC violou o direito de imagem do Joselito. Mas, diante do que ocorreu, quais os direitos que o Joselito passou a ter, frente à empresa NMC? Em outras palavras, o que o Joselito passou a poder lançar mão, para resolver a situação ocorrida?

O Joselito passou a ter o direito de fazer com que a empresa NMC parasse de exibir a propaganda comercial em tela, ou pelo menos retirasse a sua imagem da propaganda, de modo a fazer com que a violação do direito de imagem não permanecesse no tempo.

Esse direito passou a existir em razão, sobremaneira, do que está disposto no artigo 497, do CPC, de 2015, no art. 12, primeira parte, do CC, de 2002. Interessante pontuar que esse direito também pode ser denominado de remoção de um ilícito, de abstenção ou de não fazer uma conduta danosa.

Mas, o Joselito também passou a ter o direito de fazer com que a empresa NMC reparasse esse dano à imagem que já ocorreu. Ou seja, um direito de indenização por dano à imagem.

Esse segundo direito decorreu do art. 12, segunda parte, do CC, de 2002, bem como da cláusula geral estampada no artigo 37, § 6, da Constituição do Brasil, de 1988. A NMC, empresa de televisão, era uma concessionária de serviço público, isto é, uma empresa privada prestadora de serviço público; por isso, aplicou-se a ela a resposabilidade civil objetiva do Estado, prevista no artigo mencionado.

Se você prestou bem atenção em tudo o que eu escrevi, você deve ter notado que, em nenhum momento, eu escrevi que a utilização da imagem do Joselito provocou violação ao direito à honra (dano à honra) ou ao direito à privacidade (dano à privacidade).

E por que assim procedi? Porque a questão que eu analisei aqui com você se restringiu à violação ou não do direito de imagem do Joselito. Ou seja, de uma certa forma, eu quis demonstrar também que o direito à privacidade, o direito à honra e o direito à imagem são situações distintas e autônomas.

Não que a utilização da imagem de um pessoa, com ou sem violação ao direito de imagem, não possa provocar violação ao seu direito à honra ou ao seu direito de privacidade. Pode sim. Porém, a imagem é um direito da personalidade autônomo e sua violação pode ocorrer independemente da violação de outros direitos.

Por exemplo, se, no caso tratado, a empresa tivesse utilizado a imagem do Joselito, sem autorização, e de forma desonrosa (na falta de um exemplo melhor, imagine a imagem não autorizada do Joselito sentado na privada em uma propaganda de papel higiênico), teríamos a violação do direito de imagem (por ter sido divulgada a imagem sem autorização) e violação do direito à honra (por ter sido a utilização da imagem de modo desonrosa). Neste caso, existiria, in re ipsa, dois danos extrapatrimoniais (ou morais): dano à imagem (por ter sido divulgada a imagem sem autorização) e dano à honra (por ter sido a utilização da imagem realizada de modo desonroso).

Isso aqui que eu estou dizendo pra você (a respeito da autonomia do direito de imagem e dos demais direitos da personalidade) muitas vezes não é colocado, de forma clara, nas decisões judiciais e na doutrina. Porém, trata-se de uma tendência na responsabilidade civil, com a finalidade de não se colocar todas as situações de lesão a direitos da personalidade em um único pote e não gerar decisões incoerentes.

Para finalizar, lembre-se que a solução dada pressupõe a situação específica tratada neste texto: a utilização, sem autorização, da imagem em uma propaganda comercial. A solução não necessariamente seria a mesma em outras situações (por exemplo: imagine a utilização da imagem de alguém, sem autorização, em uma obra biográfica). Em breve, irei abordar outros casos envolvendo o direito de imagem, nos termos de precedentes julgados pelos nossos tribunais.

Escrito por: Fernando Nonnenmacher
Fonte: Jusbrasil