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O dolo, elemento subjetivo da conduta do agente e integrante do fato típico, é formado pela junção dos elementos volitivo – consistente na vontade, na capacidade de autodeterminação – e intelectivo, este representado pela consciência e capacidade de entendimento, ambos voltados à realização (ou aceitação do resultado) de um tipo penal (CUNHA, 2015), caracterizando-se, assim, o dolo neutro do finalismo de Hans Welzel.

O Código Penal trata da matéria em seu artigo 18, inciso I, dispondo que o crime será doloso “quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo”.

Daí que, mesmo que da simples interpretação literal deste dispositivo, resta possível afirmar que o Estatuto Repressivo pátrio adota duas teorias para a explicação do dolo: a teoria da vontade (1a parte do dispositivo), quando trata do dolo direto – sendo este a vontade consciente e dirigida à obtenção do resultado -, e a teoria do assentimento (2a parte) para o dolo eventual, cuidando das situações em que, embora o resultado não seja desejado, é previsto e aceito pelo sujeito.

Para a explicação do dolo eventual, faz-se pertinente a famigerada fórmula de Frank, segundo a qual haverá dolo eventual quando o agente diz a si mesmo: seja como for, dê no que der, aconteça o que aconteça, em qualquer hipótese não deixarei de agir. Vale dizer: o (previsível) resultado é indiferente, irrelevante para o sujeito ativo, muito embora ele não o deseje diretamente.

Nessa toada, beira aos olhos a existência de uma linha tênue entre a culpa consciente e o dolo eventual. A grande diferença é a aceitação do resultado: no dolo eventual, o resultado é previsível e aceito pelo agente, justamente por ser tratado com indiferença; na culpa consciente, por sua vez, apesar de previsível o resultado, não há anuência do agente na sua ocorrência, uma vez que ele acredita, sinceramente, que poderia evitá-lo ou que o resultado não se produziria.

Veja-se que, por questões de política criminal, diante da suposta gravidade consistente na aceitação de se produzir o resultado, optou-se pelo tratamento penal mais severo: o que seria, a priori, uma conduta culposa, é tratado como se dolosa fosse, com a aplicação da pena prevista para o crime doloso.

Não obstante, na prática se verificam graves incongruências no que concerne ao dolo eventual, mormente porque o Código Penal não traz maiores detalhes acerca da diferenciação entre dolo direto e dolo eventual.

A consequência é óbvia: existe demasiada insegurança na aferição do dolo eventual, especialmente porque se trata de uma conduta, a priori, culposa, que será transformada em dolosa (ou não!) em razão da interpretação conferida pelo aplicador do Direito.

Vale dizer, a distinção entre dolo eventual e culpa consciente é temerária: é tão sutil quanto subjetiva.

Aos nossos olhos, uma das maiores incongruências (para não dizer aberração jurídica) está na corrente doutrinária e jurisprudencial que admite a possibilidade do instituto da tentativa no dolo eventual.

A toda evidência, nada poderia estar mais equivocado. Basta uma singela leitura do artigo 14, inciso II, do CP para perceber a incompatibilidade. Ora, prevê a norma em testilha:

“diz-se o crime tentado, quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente.”

Veja-se, por conseguinte, que, para o instituto da tentativa, deve existir, imperiosamente – haja vista se tratar de exigência legal (ex vi legis) -, vontade e consciência (isto é: dolo) na conduta do agente.

Dito de outro modo, ao iniciar a execução do delito, o sujeito ativo deve estar desejando diretamente produzir o resultado, isto é, a realização do crime é querida, almejada e desejada desde o início e não tratada como algo irrelevante por parte do agente.

A pergunta é: como é possível tentar algo que não se deseja (já que no dolo eventual não se tem vontade e não se deseja nada, senão se aceita o resultado)?

A contradição e a incompatibilidade entre o instituto da tentativa e o dolo eventual é flagrante, desafiando não somente a lógica da língua portuguesa como também a lógica das coisas!

Apesar disso, no dia a dia dos egrégios fóruns e tribunais se tem realizado verdadeiro malabarismo jurídico para justificar o injustificável.

Torna-se a indagar: como admitir um iter criminis que carece das fases de cogitação, dos atos preparatórios e da intenção de iniciar a execução de um crime, diante da ausência de vontade do agente?

Uma distinção, no particular, há de ser feita. Não podemos confundir o “querer o resultado” com o “assumir o risco de produzi-lo”, assim como não podemos esquecer que, apesar de se tratar de uma espécie de dolo, o dolo eventual possui a estruturação de uma imprudência (culpa), sendo de notório conhecimento a impossibilidade (por incompatibilidade) de tentativa nos crimes culposos, justamente – parece óbvio! – pela ausência da vontade.

Para além da clarividente incompatibilidade entre dolo eventual e tentativa, ainda, deve-se atentar para a incompatibilidade da incidência de circunstâncias qualificadoras subjetivas nos casos de dolo eventual, ou seja, nos casos em que a acusação tem como base uma ação não finalisticamente orientada (uma conduta culposa a priori que, por questões de política criminal, é tratada como dolosa na modalidade eventual).

Isso por um motivo bastante lógico: se o agente não intenciona o mais, que é o delito, ele também não intenciona o menos, que são as qualificadoras!

Rogério Greco (2013), com a maestria que lhe é peculiar, demonstra a verdadeira aberração jurídica consistente na admissão de tentativa com base em dolo eventual: basta imaginarmos o famigerado delito de trânsito em que o agente dirige embriagado e acaba produzindo a morte de, por exemplo, duas pessoas e ferindo outras três.

Nas palavras de Greco (2013):

“quando seria o início da execução? […] quando o agente, embriagado, estivesse imprimindo velocidade excessiva em seu veículo, já estaria praticando atos de execução? Entendendo-se dessa forma, imagine-se que o agente, naquelas condições apontadas, partisse do ponto A com seu automóvel, a fim de chegar ao ponto B […]. Entre o ponto A e o ponto X o agente passou por aproximadamente 100 pessoas, até que o acidente ocorresse. Teríamos aqui, também, de computar mais 100 tentativas de homicídio, já que, admitindo-se a tentativa no dolo eventual, não poderíamos deixar de lado aquela considerada tentativa branca?”

Além disso, como aponta Greco (2013), a solução é igualmente inapropriada nas hipóteses de ocorrência, por exemplo, de morte e lesões, uma vez que estaríamos diante de um dolo – não desejado! -“bipartite”.

Portanto, somos que o instituto da tentativa, notadamente diante do expressamente previsto no inciso II do artigo 14 do Código Penal, somente é compatível com o dolo direto, sendo manifestamente incompatível com o dolo eventual.

Com efeito, para encerrar, repisa-se: a incompatibilidade é gramatical e lógica. Se o resultado não é desejado diretamente pelo agente, não há possibilidade de que esse resultado, que não é almejado, seja evitado por circunstâncias alheias de quem não desejava e não tinha vontade de perpetrar o delito!

Escrito por: Guilherme Espíndola Kuhn e Luiz Fernando Falci da Fonseca
Fonte: Canal Ciências Criminais – Jusbrasil

Referências:

CUNHA, Rogério Sanches. Código Penal comentado para Concurso. Bahia: Juspodvim, 2015.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. – 15. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.